quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Politização


Entrevista do cientista político Renato Lessa

-------------------------

Renato Lessa: "Falta politização nas questões urbanas e a inteligência política não está voltada para suas especificidades"
Valor: O senhor já disse que toda política é local, mesmo a nacional. Como entendemos o vínculo entre a dinâmica local e os efeitos nacionais, nestas eleições de 2012?
Renato Lessa: Esta eleição é forçosamente local. Tanto que a expectativa de que o julgamento do mensalão afetasse os resultados do PT em centros importantes não se deu. Eleições locais têm sua gravitação particular. Há uma dinâmica política local que, ainda que mantenha ligações com o resto do sistema, tem sua lógica própria, suas próprias idiossincrasias. Por outro lado, em cidades importantes como São Paulo, as eleições nunca são só locais. Não dá para imaginar que uma disputa entre José Serra e Fernando Haddad, PSDB e PT, é só uma disputa para prefeito. Em eleições locais de grandes centros, vemos envolvidas todas as dimensões do sistema político.
Valor: Isso explica por que os temas urbanos são pouco tratados nos debates dos grandes centros?
"É difícil surgir uma oposição de direita, não só pela tradição, mas porque este governo adotou bandeiras da direita"
Lessa: Falta uma cultura política que esteja à altura do fato de que o Brasil é 85% urbano, portanto os problemas sociais brasileiros são urbanos: habitação, segurança, mobilidade. A inteligência política, estratégica, não está voltada para as especificidades da cena urbana, que é tratada depois das eleições por tecnocratas. Na campanha, falta a politização dos cidadãos para questões que digam respeito à política geral da cidade.
Valor: Ontem se completaram dez anos do segundo turno de 2002, que elegeu Lula. Hoje, seu candidato à prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad, foi eleito. Ele se tornou mesmo um visionário da política brasileira, depois de eleger Dilma Rousseff em 2010 e mais uma indicação sua em 2012?
Lessa: Há uma sociologia eleitoral que faz as coisas acontecerem. Em São Paulo isso é evidente, com a penetração do PT na periferia. Não são só eleitores individuais que aparecem do nada e votam. Tem a virtude do ator e uma configuração sociológica de identificação política. Por outro lado, tem a deserção do PSDB de apresentar à sociedade um projeto diferente. Não há competidor ao governo do ponto de vista programático, da formulação de políticas.
Valor: Com o encolhimento de PSDB e DEM, de onde poderia partir uma oposição pragmática hoje? A tradição da direita brasileira não é muito programática.
Lessa: É difícil surgir uma oposição programática de direita no Brasil, não só pela tradição, mas pelo fato de que este governo incorporou muitas bandeiras da direita, valores conservadores como o mercado, o apaziguamento das contradições sociais, a tutela dos movimentos sociais. A direita social está dentro do governo. Este é um governo difícil de ser superado pela direita. Resta a hidrofobia.
Valor: E quanto a José Serra? Como fica o futuro político dele?
Lessa: Ele é um mistério. Teve 40 milhões de votos contra a candidata de um governo extremamente bem avaliado, número que em qualquer país do mundo o qualificaria para ser líder da oposição em plano nacional. Mas ele desertou dessa oposição nacional: balbucia de vez em quando algo de natureza moral e desaparece. Ele traiu seus eleitores. Já vi muito político vencedor fazer isso, mas Serra é um caso único de político derrotado que trai seus eleitores.
Valor: Talvez algum outro candidato vencesse contra Haddad?
Lessa: É bem possível. Sobretudo levando em conta que o PT sempre perde em São Paulo. Perdeu com Dilma, perdeu com Lula. Numa disputa entre PT e PSDB na cidade de São Paulo, não me lembro de outra vitória do PT. A viabilidade de Serra vai depender do que seus companheiros de partido vão fazer com ele. Não é muito auspiciosa a oferta que lhe fizeram de presidência do PSDB.
Valor: Que, por sua vez, sai mal da eleição.
Lessa: Sai com uma derrota complicada. Perdeu onde não podia perder. Esta eleição em São Paulo era crucial também para o PT. Nenhum dos dois poderia perder. Não há compensação possível. Imagine se estivéssemos falando da derrota do Haddad: seria incompensável com qualquer outro resultado no Brasil.
Valor: O julgamento do mensalão não afetou os resultados?
Lessa: Os resultados foram afetados pela dinâmica das políticas locais. Em São Paulo, isso é evidente. O PSDB tinha condições muito favoráveis para vencer. O PT veio com um candidato desconhecido. O partido estava à sombra da iminência do julgamento do mensalão, que àquela altura ninguém sabia em que daria. Do outro lado, um prefeito mal avaliado, mas um governador bem avaliado [Geraldo Alckmin]. Serra era muito conhecido, só depois fomos saber o tamanho de sua rejeição. O mensalão não afetou o resultado. Houve um descolamento entre a reprovação que as pessoas têm do roubo na política (essa reprovação existe, a tal ponto que Joaquim Barbosa é um herói nacional) e a escolha eleitoral. O sistema político, no qual o PT é hegemônico, tem recursos políticos suficientes para suportar o desgaste do mensalão. Entendemos um pouco melhor agora a escolha de Lula. Haddad está desvinculado dos episódios que deram origem ao mensalão.
Valor: O PT está deixando o discurso da "farsa" para trás?
Lessa: É como se dissesse: "agora vamos jogar outro jogo", um "PT pós-AP470". Haddad aparece como a cara do petismo para o qual há vida pós-mensalão, e essa vida vai depender da interpretação que o próprio PT vai fazer. Uma indicação disso foi dada por Haddad, que definiu o julgamento do mensalão como um processo de depuração da política no Brasil. Isso, para um petista, é muito forte.

--------------------------

Nenhum comentário: