terça-feira, 6 de novembro de 2012

Aos educados para o medo: Algumas constatações do mestre Drummond...

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O MEDO

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno.
De nós, de vós; e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses.
Nosso destino: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto da noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas de medo e calma.

E com asas de medo e prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus, vamos para frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes....
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

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Carlos Drummond de Andrade/A Rosa do Povo

3 comentários:

Scylla Lage Neto disse...

Marise, é tão bonito que dá até medo.
Adorei!

Marise Rocha Morbach disse...

É sim! Como escreveu o próprio Drummond: este poema me deixa "comovida como o Diabo!". Abraço, meu caríssimo Scylla!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Fantástico. Simplesmente fantástico.