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Vale Cultura e a arrogância da nossa elite cultural
Vale Cultura e a arrogância da nossa elite cultural
A Câmara dos Deputados aprovou, nesta quarta (21), o Vale Cultura, um benefício de R$ 50,00 mensais para trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos. A ideia é subsidiar, através de renúncia fiscal, o acesso a cinemas, teatros, shows, exposições, enfim. O valor não é muito, ainda mais considerando os custos dos produtos culturais no Brasil, mas já é alguma coisa. O projeto estava travado desde 2009, quando o governo Lula prometeu colocá-lo em vigor dentro de um ano.
Na prática, a pessoa receberá R$ 45,00, uma vez que as empresas poderão descontar até 10% do valor do benefício da remuneração dos que optarem pelo programa. Além do mais, o custo será compartilhado, uma vez que os empregadores contam com a possibilidade de deduzir parte do valor gasto do seu imposto de renda.
Se o instrumento vai dar certo ou não, se vai ter adesão em massa das empresas e da indústria cultural, só o tempo dirá. Mas o Vale Cultura, na época de seu lancamento, levantou um debate na classe artística e entre alguns colegas de imprensa que precisa ser resgatado. Pois é raro discutir o acesso à cultura pelos mais pobres para além do que despeja a televisão.
Ouvi e li depoimentos reclamando que o “povão” iria torrar os 50 mangos em besteira, em livros de auto-ajuda, shows de brega ou forró, filmes blockbusters ou neochanchadas nacionais, enfim. Que deveria ser criada uma maneira do gasto ser feito apenas em produtos de “qualidade” ou da “cultura popular” dos estados. Ou seja, não deixar que se comprasse qualquer bobagem.
Tirando o lado elitista, preconceituoso e pseudo-paternalista desse tipo de declaração (já ouvi de muito empresário e fazendeiro, que faziam falcatruas trabalhistas, e de deputado federal que defendia os dois primeiros, que retenção de remuneração serve para evitar que o peão se afunde na cachaça com o salário…), ela também inclui uma visão um tanto quanto distorcida da realidade.
Poderíamos discutir horas a fio sobre os mecanismos da indústria cultural que levam a um produto de massa se sobrepor e esmagar manifestações tradicionais e as conseqüências disso. Contudo, a preservação do patrimônio cultural tradicional não se resolve forçando o povão a consumir um baião tradicional a um tecnobrega, um grupo de cateretê a uma dupla sertaneja, um samba de raiz a um funk proibidão.
Também ouvi coisas do tipo: “esse povo precisa de um banho de Chico Buarque”. Sinceramente acho que todo mundo precisa escutar o homem. Mas a frase, vinda da boca de um culto amigo, irritado com um carro que jorrava tecnobrega no último, gerou aquele arrepio na espinha. E, certamente, não foram os fantasmas de Theodor Adorno e Max Horkheimer passando por perto. Sua crítica não se relacionava ao tratoramento da arte pela estrutura capitalista de reprodução e distribuição de cultura, que a transforma em mercadoria a ser consumida passivamente. Pois, ele próprio é um desses consumidores, que bebe empacotados dito eruditos, vilamadalenizados, mas que tenta “curar” o outro.
Na opinião destes, de “cultura de qualidade”. A clivagem entre o popular e o erudito (e a ignorância de fundir o erudito com o bom) é apenas parte dessa discussão. Esse tipo de pensamento, com a reafirmação de símbolos para separar “nós” da plebe, expressa mais preconceito de classe do que qualquer outra coisa.
E, em um ímpeto quase jesuítico, a necessidade de catequisar vem à tona, para trazê-lo à nossa fé. Não que eles poderão entender tudo, mas poderão, pelo menos, deixar o estado de barbárie em que se encontram ao respirar o mesmo ar que nós.
Nos grandes centros, o consumo da chamada cultura regional tradicional ganhou espaço entre os mais ricos e formadores de opinião. Virou cult. É em cima dessa análise que muitos querem resgatar, forçosamente, um passado “menos selvagem” em que a população de determinado lugar consumia esse tipo de arte da qual também gostamos. Sem se atentar que as coisas mudam, ou que a indústria cultural tem seus processos – que fazem ricos empresários que, ironicamente, bancam esses mesmos formadores de opinião.
Defender, propagar, incentivar as manifestações tradicionais é fundamental porque elas fazem parte de nossa identidade e ajudam a definir o brasil como Brasil. Mas sem desconsiderar as outras manifestações que ganharam visibilidade, também têm o seu valor e são queridas por muita gente. Bem, a discussão é bem mais complexa e não cabe em um post.
Ampliar o leque, dando mais possibilidades de escolha para a sociedade é uma coisa. Guiar o consumo cultural para preservar uma imagem que uma elite intelectual dos grandes centros tem de como deveria ser a cultura brasileira é outra.
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Leonardo Sakamoto
2 comentários:
Texto magnífico. Realmente, há muitos que defendem, com fervor quase religioso, a ideia de que as pessoas mais humildes ou letradas devem ser protegidas delas mesmas. Patrulhar os gostos culturais como condição para o gozo de um benefício estabelecido em lei é algo tão aberrante que desafia até mesmo a capacidade de expor a indignação.
Além do mais, os críticos se esquecem de que o axé e suas letras de meia dúzia de palavras; a lambada noventista; o funk proibidão, o bostanejo universitário e suas variações de neoforró, arrocha e, no Pará, as incontáveis variações de brega, melody e afins são expressões não de uma cultura verdadeiramente popular, de raiz, mas de uma indústria de entretenimento que investe pesado para que os populares consumam essas drogas - não por acaso, junto com as outras, álcool principalmente. É uma conspiração de altíssimo interesse econômico, que transcende a capacidade individual de formar seus próprios gostos.
Veja que eu, que me pretendo culto, sou capaz de acessar mais de uma vez o YouTube para ver o Psy imitando um cavalinho em sua "Gangnam style", logo depois de ver uma orquestra sinfônica tocando ao ar livre em Viena. Imagine o que acontece com quem não gosta de orquestras...
Que bom vê-lo por aqui Yúdice: melhor ainda o seu comentário; abs.
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