Um alvará não torna uma casa noturna segura em São Paulo
Por conta da estúpida e dolorosa tragédia dos 231 mortos em
Santa Maria (RS), muito se discute sobre a falta de alvará para funcionamento
da boate que pegou fogo.
Não posso dizer como ocorre em Santa Maria, mas em São
Paulo, que congrega a maior quantidade de casas noturnas do país, um alvará
pode não significar absolutamente nada. Há locais que o possuem e estão dentro
das normais. Mas outras totalmente irregulares também contam com o documento.
Uma das razões é a velha e conhecida máfia que se estabelece em torno do
processo de emissão e fiscalização de licenças de bares, restaurantes e casas
noturnas na cidade.
Muitos já se escreveu sobre isso: de diretores de órgão públicos
que ficaram milionários dando licenças para grandes empreendimentos, shopping
centers que funcionam sem poder funcionar até funcionários que reclamam de
perseguição (quando pedem propina para continuar o trabalho). O fato é que
qualquer prefeito que tentar mudar essa realidade, desburocratizando e
digitalizando os processos de obtenção de certidões e licenças e punindo os
servidores públicos corruptos, por exemplo, é bem capaz de cair antes da
própria máfia.
Sob o impacto do que ocorreu em Santa Maria, o prefeito de
São Paulo Fernando Haddad determinou a criação de uma comissão para verificar
se a legislação para prevenção de incêndios em locais fechados está adequada à
cidade, aprofundar a atuação do poder público e evitar que tragédias semelhantes
ocorram. Agora, precisa combinar isso com os russos, como diria Garrincha.
Porque lei é letra morta se a fiscalização não operar de acordo com ela.
Conversei com envolvidos com essa rede que pediram para não
serem identificados. Para obter uma licença de funcionamento, bares,
restaurantes e casas noturnas têm que apresentar à Prefeitura de São Paulo uma
série de documentos, como por exemplo, certidão da instalação de gás, laudo de
acústica, um vistoria dos bombeiros…
O problema é que, não raro, você apresenta tudo, mas o
status segue “em análise”. Até que, um dia, um fiscal aparece e te multa por
funcionamento sem licença.
- Ah, sim temos um problema de morosidade dos processos aqui
na repartição, mas você só poderia funcionar depois que tivesse a obtido sua
licença.
Funcionar sem licença é errado, claro. Mas funcionários do
próprio Estado criam dificuldades para o andamento do processo para vender
facilidades.
Tudo bem, vamos pelo comportamento correto. Você aluga um
imóvel, tira todas as certidões e espera a prefeitura conceder o documento
antes de abrir o seu bar. Muitas vezes, a prefeitura simplesmente não se
manifesta. Depois de um ano, as certidões vencem. Ou “são vencidas” pelo tempo.
- Poxa, não sei o que está acontecendo. Já gastei milhares
de reais em aluguel jogado fora sem abrir a minha casa noturna, sendo que está
tudo ok em questões de segurança. Ninguém me dá um prazo! E se demorar mais
seis meses, vou ter jogado meu dinheiro fora.
– Vou te ajudar. Liga
para esse engenheiro aqui, o Robervias. Ele resolve tudo para você. O cara é
bom.
Aí você liga e o sujeito aparece para uma reunião.
- Olha, o alvará de casa noturna nesta região custa R$ 30
mil.
– Como é que é? Mas
não deveria ser gratuito?
– Hehehe. Não é bem
assim que as coisas funcionam.
– Ah, mas meu
estabelecimento está de acordo com a lei. Prefiro continuar tentando.
– Boa sorte, então.
E as certidões continuam a vencer depois de um ano sem que
alguém as analise.
Por vezes, o dono do estabelecimento não possui todas as
certidões. Alguns querem economizar com a insegurança alheia. É um pára-raios
que falta aqui, uma saída de emergência fora do padrão ali, extintores de
incêndio em número insuficiente, um isolamento térmico que não existe.
Elementos que deveriam impedir o funcionamento de qualquer lugar que reúna
multidões. Nesse caso, um pagamento pode resolver.
- Então, estou meio irregular, sabe?
– Vai custar R$ 35
mil para resolver tudo, incluindo o alvará. Pode confiar. Quando sair no Diário
Oficial, você me paga.
– E o que garante que,
uma vez emitida a licença, eu não dê um calote em você?
– Hahaha. Você não
vai.
O número daqueles que se beneficiaram dessa prática, sendo
empurrados para isso como alternativa oara existir ou que buscaram economizar
comprando o direito de funcionar, é tão grande que revelar todas as histórias
significaria rever uma quantidade significativa dos estabelecimentos comerciais
da cidade. Porque, na prática, poucos são os que tiraram alvará sem passar por
uma das situações aqui descritas. Isso significaria fechar alguns, refazer o
projeto de outros. Lembrando que, quanto maior o estabelecimento, menor as
chances de adequação depois de aberto. Por que? É o poder econômico, estúpido!
É só pegar os casos que foram trazidos a público pela mídia e ver que fim deu.
Enquanto isso, pessoas que analisam tragédias dizem que é
necessário reforçar a fiscalização e criar novas leis. Com as conhecidas
denúncias contra a fiscalização de estabelecimentos urbanos que temos no
Brasil? Sem combater a corrupção antes? Isso seria enxugar gelo. Há
funcionários públicos que não compactuam com isso. Outros fazem vistas grossas
para sobreviver na selva. E, claro, parte deles é do esquema. Portanto, melhor
seria “refazer” a estrutura, praticamente a partir do zero, criando processos
transparentes e rápidos e impedindo a política do “faz-me rir”.
São Paulo não é marcada por grandes tragédias em incêndios
de casas noturnas, apesar da profusão delas. Mas fica a pergunta: uma cidade
como a nossa está preparada para garantir que isso não vá ocorrer de fato? É
possível resolver o drama da fiscalização, no sentido de que ela garanta
segurança a quem utiliza os estabelecimentos comerciais e os locais públicos da
cidade? Ou São Paulo continuará bradando seu moralismo hipócrita de que é
preciso manter nossos jovens seguros, criando regras para inglês ver e
escondendo a cabeça debaixo da terra quando investimentos tiverem que ser
feitos para adequar negócios à lei?
Leonardo Sakamoto
3 comentários:
Scylla, fiquei desejando postar este texto do Sakamoto; mas como estou super rabugenta, e o Sakamoto é hiper rabugento, relutei. Mas é isto mesmo, sem tirar nem por.
Um amigo meu dono de hotel
me disse que esta gente que faz vistorias não são flores que se cheire. É preciso muita "conversa" para que seja liberado qualquer coisa. Uma vergonha! As autoridades que liberaram esta Boite no RS já a muito deveriam estar presos por liberarem um local que a porta de emergencia até boneca fica entalada. É a grana falando mais alto!
Marise e Pedro, é isso aí...
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