segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Benedito Nunes em: “A Rosa o que é de Rosa”

O romance é um organismo vivo...
Benedito Nunes, em: “A Rosa o que é de Rosa. Literatura e filosofia em Guimarães Rosa”

Quando me enveredei por “Grande sertão: veredas” (Guimarães Rosa, 1957) vivia a árdua missão de escrever um livro médico. Levei dois anos encarapuçado de escritor. Na ilharga das ideias guardava as palavras rosianas no mesmo ritmo daquelas 501 páginas que me renderam algumas láureas científicas.
Enquanto escrevia, lia Guimarães no descanso de tela do computador ou quando me acocorava no banheiro em busca, tal como Proust, de um tempo perdido. E nesse período não trabalhei menos e nem deixei de dar aulas. Eu vivia, para acalmar o aperreio de escritor, uma paixão inebriante por Guimarães Rosa por se tratar de uma linguagem voraz, inventiva, que irrompia com o tradicional escolástico. Isso desopilava meus neurônios e me deixava mais à vontade para escrever aquele livro.
Desde então tudo que existe sobre Guimarães Rosa eu compro, leio e guardo; releio e guardo; ouço e guardo. Até um dicionário já comprei. Livro de suas correspondências: já comprei. Fotografias: já comprei. Discos: já comprei. E venho colecionando Guimarães desde então. Já até me apelidam de Guimarães Roger.
E foi Rosa quem me impulsionou a conhecer o filósofo paraense Benedito Nunes, que já se encontra no segundo andar desde 2011. Certa vez havia lido que, aos sábados, ele fazia leituras filosóficas de Guimarães lá pelas quebradas da BR, num templo católico. Fui bater lá. Era aos sábados. Benedito se debruçava sobre a estética de “Grande Sertão”. Encantava-me sua interpretação. Bené idolatrava o jagunço Riobaldo – e eu também. Esse encontro me levava a uma reflexão dialética sobre o que eu estava lendo e sobre o que eu escrevia sobre cirurgia. Acabou que, remando com Guimarães Rosa, citei-o em alguns capítulos “travosos”, tipo assim: “E até respirar custa dor, e nenhum sossego não se tem”. Esta é a epígrafe do capítulo Fraturas de costelas.
As reflexões filosóficas de Benedito Nunes ficaram na lembrança pelo modo como ele virava do avesso aquela obra e me fazia entender aquele sertão-mundo no mesmo compasso do Sertão-Mancha de Cervantes e do Sertão-Dublin de Joyce.
Só que, a cada inverno amazônico, as enxurradas lavavam minha lembrança daqueles encontros de sábado e avivava o arrependimento de não ter documentado aquele momento. Fez-me doer as costelas. O tempo pui o fio da memória e a oxida a cada chuva – digo. 
Segui arrependido por todo aquele tempo ido, até que fui passar o Natal lá pelas quebradas dos Geraes - como se referia Guimarães Rosa ao seu torrão -, e, perpassando pelas livrarias do aeroporto Val-de-Cans encontro o tesouro perdido: “A Rosa o que é de Rosa” (Rio de Janeiro, DIFEL, 2013). Alguém resolvera recolher os pensamentos filosóficos de Benedito Nunes e escrever sobre a relação fenomenológica dele com o Jagunço Riobaldo. É claro que comprei sem perguntar o preço. Guimarães Rosa não tem preço e Benedito Nunes vale todos os cartões de créditos. E o alguém não é um alguém qualquer, é Victor Sales Pinheiro, um estudioso de Benedito Nunes. O livro é formidável e tem o mesmo ritual do premiado “A “Clave do poético”, do mesmo Victor Sales. o fascinante foi que me fez resgatar um pouco daquelas manhãs de sábado. Então despertei do vácuo de minha memória.
Segue: Em “Grande sertão: veredas” colocam-se, portanto, no mesmo nível, a ação verbal e a ação romanesca, a palavra poética e a gesta, uma produzindo a outra incessantemente, e juntas produzindo o sertão-linguagem, o sertão-mundo, cujas veredas são também caminhos da língua portuguesa.

Além da linguagem, Benedito me ensinou a entender os infinitos sertões-adentro de Guimarães Rosa. 

14 comentários:

Erika Morhy disse...

Colega, querido, você sempre traz coisas ótimas pra compartilhar conosco. E devo dizer que me fizeste lembrar de quantas vezes já percorri estes caminhos, de um autor levar a outro, interagir com nosso próprio umbigo... devanear. Acho uma delícia; é um gozo quase gustativo mesmo. às vezes leva a outros caminhos, que parecem um tanto tortos, mas que continuam a me encantar; e encantar feito encantaria, dessas que podem me levar pra um fundo de mar. Um silêncio gutural. Uma solidão impagável.
Feliz ano novo!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Isso mesmo, Érika. Acho que essas coisas devem mesmo atar laços do compartilhamento, por isso estou aqui no Flanar, flanando ideias.

Abel Sidney disse...

uma boa leitura parao início de 2014.

grande irmão Roger, sigamos sertões adentro, dentro e fora de nós. laços haveremos de forjar; palavras não hão de faltar...

na roseira e seu entorno haverá espaço para nós outros nos aquietarmos e aprendermos com estes citados mestres.

sigamos.

Araciara Macedo disse...

Belo texto, nos faz ter duas vontades que se unem em um mesmo objetivo, reler grande sertão vereas e conhecer a obra a rosa o que é de rosa. Parabéns Doutor

Unknown disse...

Pelo menos fostes um dia na BR e eu que nunca pude, nunca deu, era longe... enfim. Incrível, estava pensando nisso ontem e encontrei esse blog hoje.E já gostei muito das dicas dadas por aqui, que fique registrado o elogio.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Abel,
O roseiral do verbo rosiano é puro coração-sertão - dentro e fora do ventrículo, por isso confesso que preciso reler "Grande sertão: veredas". Agora para entender Benedito Nunes, um mago na arte da crítica.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Araciara,
para mim você é membro-titular da confraria do Equador, como se refere um amigo meu chamado Corisco, por isso acredito no seu elogio. Visite-nos sempre: não dói e nem arde.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Unknow, meu caro.
Não sei se sou merecendente, mas é de tanto me arrepender foi que deu na veneta de escrever esse amontoado de coisas. É sentindo todo tipo de dor que a gente dá de escrever e se divertir com as palavras. Venha mais; puxe a cadeira, ajuste a almofada e sente. Vais gostar.

Francisco Rocha Junior disse...

Caro Roger,

Gosto principalmente de dois ensaios, em "A Rosa o que é de Rosa": aquele que fala do amor no Grande Sertão, evidenciando um discurso que poderia constar no Banquete de Platão; e aquele que descobre e desdobra as várias camadas interpretativas do livro, a partir do texto de um crítico português cujo nome não me ocorre agora, cuja análise é derrubada de modo inclemente pelo professor Benedito Nunes.

No ensaio sobre o amor no Grande Sertão, senti falta tão somente de uma das espécies de amor experimentados no monólogo (nem tão monólogo assim) de Riobaldo: o texto fala de Diadorim, Otacília e Nhorinhá, mas não de Rosa'uarda. Por quê? Como a conversa filosófica é atemporal, alguém ainda o dirá - se é que certamente já não se falou disso por aí. Rosa'uarda, a mulher mais velha que iniciou sexualmente o jovem Riobaldo, não lhe teria causado amor?

Já no ensaio sobre as diversas abordagens possíveis do Grande Sertão, Benedito dialoga com a introdução ao livro assinada pelo grande Paulo Rónai, que foi reproduzida na edição da Nova Fronteira. Rónai não só abre uma brecha na cortina da obra de Rosa, apresentando-a rápida, mas eficientemente ao leitor, como parece encaminhá-lo às análises de Benedito Nunes. O diálogo atemporal (ou intertemporal) entre Bené e Rónai é um bom exemplo do que eu disse acima: o diálogo filosófico não se limita no tempo, nem por ele se impossibilita. Ainda bem.

Por fim, acho importante dizer que "A Rosa o que é de Rosa" reúne alguns textos que originariamente constam do "Dorso do Tigre", obra anterior de Benedito, que foi reeditada pela Editora 34 há alguns anos, quando o filósofo ainda estava vivo. O interessante da reorganização do Victor Sales Pinheiro é a catalogação e reunião, em uma só obra, de outros ensaios e artigos de Benedito Nunes sobre Guimarães Rosa, a respeito de quem ele foi um certamente um dos intérpretes mais fecundos e criativos.

Excelente recomendação, a da postagem.

Abel Sidney disse...

consegui a versão digital de Grande Sertão: Veredas e comecei a leitura.

cansado de só ouvir falar, comentar, aventuro-me.

percebo que é leitura para se saborear aos pouquinhos, sem pressa nenhuma e sem consulta a qualquer outra obra numa primeira visada. carece só de ouvir...

teremos uma "moeda comum" para a troca ao longo dos próximos anos.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Francisco,
É muita verdade o que tu comentas. Demorei a responder, ora pois, porque ainda fui procurar a página que ele se referia ao crítico porttuguêss. O nome de le é João Gaspar Simões e Benedito rebate assim: " Já dissemos o bastante para mostrar que João Gaspar Simões se equivoca. O fogo de bengala estilístico a que se refere acendeu os fogos da língua portuguesa, queimando-a como um Phênix, que precisava da combustão do renovamento. Quanto a Riobaldo ele é tão rústico quanto um Amadis de Gaula e tão ignaro quanto um Homero, que, não tendo sido um helenista, conhecia profundamente os mitos gregos... Espírito ávido, inquisitivo, atende aos detalhes da natureza, ele é um persoinagem síntese." Refere ainda adiante, que Riobaldo é descendente de Antonio Conselheiro e afilhado de Padre Cícero.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Abel, isso mesmo.
Eu levei dois anos. Foi entre 2006-7, exatamente como descrevi no post: degustando cada página. Sugiro que leias com um dicionário rosiano ao lado - Vais aproveitar melhor. Estou bastante motivado a relar. Se me enviares a versão eletrônica, posso me estimular.

Abel Sidney disse...

Segue para você e todos os leitores o link para baixar o Grande Sertão.

Um alerta: o livro é uma versão integral e disponibilizada em 2006 pela Editora Nova Fronteira; porém, está dito, erroneamente, que a obra tem dois volumes, o que não é correto.

http://bit.ly/grandesertaoveredas

boa (re)leitura!!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Obrigado, Abel. Vale a a dica para todos os flaneurs. É muito verdade verdadeira o site.