Tenho visto com muita frequência, nas últimas semanas, notícias sobre linchamento. São notícias de casos no Brasil. Notícias de casos na Argentina. É bem verdade que a "justiça com as próprias mãos" não é um fato recente. Em diferentes épocas da humanidade e em diferentes conjunturas, estavam ali os linchamentos. Pra citar as que me vem à mente, assim de pronto, cito o ciclo da escravidão e da ditadura. Bem, mas com anuência ou não do Estado, pelas mãos ou não do próprio Estado, ali estavam e aqui estão. O fato é que parecem ter ganhado espaço mais frequente na grande imprensa recentemente. E eu sigo muito espantada com a capacidade humana de torturar o outro. É resultado de nossa história de barbáries? É fruto de um Estado insuficiente para formar cidadãos adequados às leis que pactuamos?
Ao invés de me aventurar as hipóteses, ofereço um texto que é quase um poema parido por Marcelo Semer, juiz de direito e escritor, ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, autor do romance Certas Canções (7 Letras) e responsável pelo Blog Sem Juízo.
Boa sorte a nós!
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A barbárie chega aos poucos.
Ela se instala quase sempre sem alarde.
Na maior parte das vezes, por trás de motivos ditos imperiosos, circunstâncias extraordinárias e outras coisas pretensamente terríveis com que nos convencem a abrir mão de direitos.
Ela cresce sob a batuta do medo e a suposta necessidade de reagir, gerando ainda mais medo, naquele círculo vicioso de uma profecia que se autorealiza.
As pessoas vão se acostumando a romper os limites do que pensam e falam e como se tratam. Jornalistas e políticos abrem mão de seus protocolos e de seus princípios. Juristas acomodam e flexibilizam os conceitos do direito. E a histeria vai comendo a todos pelas bordas.
Quando a gente se dá conta, está matando uma mulher à pancada em plena rua, porque alguém disse que quem sabe teria sido suspeita de um crime que ninguém nunca viu.
Já faz tempo que vimos nos seduzindo por um discurso irresponsável e sensacionalista que prega, a partir do eterno mito da impunidade, a necessidade de mais polícia, mais pena, mais prisão, mais tortura, mais mortes.
A lógica do estado policial vai se instaurando como um vírus dentro do corpo social, porque interessa a muitos que combatem, às vezes abertamente, outras de forma sub-reptícia, a preservação do estado social.
Afinal, direitos são mais caros do que penas. E emancipam, não encarceram.
As soluções de todos os problemas passam, então, pela dinâmica criminal. Tudo é criminalizado e criminalização é cadeia e cadeia é, sobretudo, dor, sofrimento e morte.
E quando o direito penal não funciona, a culpa não é atribuído ao excesso, mas à escassez, resolvendo-se, então, em mais crimes, mais penas, mais prisões, mais torturas.
E o reclamo de que o estado é ineficiente, leniente, frouxo e que as pessoas tem “legítima defesa” para agir contra criminosos.
Quando a gente se dá conta, está matando uma mulher à pancada em plena rua, porque alguém disse que quem sabe teria sido suspeita de um crime que ninguém nunca viu.
Pouco importa se a cultura do bandido bom, bandido morto resulta em uma contradição inconciliável –porque matar é um crime mais grave do que a maioria dos crimes atribuídos a esses "bandidos" que são mortos.
O importante é aumentar o tônus criminal, porque isso dá audiência, isso dá votos, isso dá ordem e disciplina, isso confirma uma linha imaginária (e, sobretudo, racista) que separa os bandidos dos homens de bem –criminosos em muitas outras órbitas, mas homens de bem assim mesmo.
E na toada vamos concordando com o aumento de penas, com o encarceramento desmedido, com o senso comum de que a impunidade cresce, paradoxalmente com o inchaço da população carcerária, e que, enfim, é preciso aceitar medidas drásticas para situações excepcionais.
E passamos a tratar criminosos como inimigos, manifestantes como terroristas, favelados como subumanos, e vamos admitindo as violências policiais, os estados de sítio implicitamente decretados nas decisões judiciais, e compreendendo a revolta de quem se vê, ou apenas se sente, vítima da criminalidade.
Aí a gente criminaliza a defesa, porque só atrapalha, culpa o habeas-corpus porque atrasa a justiça, responsabiliza os próprios presos pelas violências que sofrem, e admite prender garotos no poste, quando são flagrados no crime, porque, afinal de contas, nada funciona mesmo.
E quando a gente se dá conta, está matando uma mulher à pancada em plena rua, porque alguém disse que quem sabe teria sido suspeita de um crime que ninguém nunca viu.
2 comentários:
Belo texto, Erica. Bem selecionado.
Obrigada, Roger. Este foi um dos mais belos que li. E achei mais justo escolhê-lo diante de um tema tão duro e triste.
Um abraço!
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