domingo, 23 de novembro de 2014

Cesta do enfraseamento: Safári em terra de onças


Drive your work. Do not let your work drive you
Kenneth Mattox, 2008 (comunicação pessoal)

Nestor é um desses cirurgiões inquietos. Está sempre de olho no próximo desafio. Acaba um logo mira outro. Após longo período na rotina, sentiu cuíra e procurou aventura fora da raia clínica. Lembrou-se de um amigo espanhol que costuma ir à África para fazer safáris e do lendário texano Keneth Mattox autor do livro “Top Knife – arte e estratégia na cirurgia do trauma”, que não sai de sua cabeceira. Nele leu o provérbio chinês: “vá para o coração do perigo, porque ali você encontrará a segurança”. A epígrafe é do capítulo intitulado “Safári em terra de tigres”.

Toda vez que avistava o livro sentia palpitação, até ter a seguinte ideia: ir ao Pantanal. Queria - porque queria - dormir sob a batuta de uma onça pintada solta no próprio habitat e, de certa forma, por isso, tinha inveja de seu amigo espanhol.

Comprou duas passagens e programou a ida com seu amigo de trabalho mais Pi, o melhor guia de Corumbá. O nome Pi era uma homenagem ao premiado filme “As aventuras de Pi”, pelo fato de conhecer bem as onças do Pantanal. Seria aquele o último estágio de sua inquietude - o desafio que lhe enclasurava na terra.

Já no primeiro dia de selva encontraram pegadas do felino. Era ali o local ideal. Pi endossou. Empunharam as baladeiras na cumeeira de uma Sucupira e esperaram a noite estrelar e o sono afagar. O amigo, cansado, logo desmaiou e começou a roncar pesado. Nestor havia esquecido que ele era um trovão humano e Pi avisou que onças se tornam mais agressivas quando ouvem roncos.

Nestor mal cochilava e logo despertava com o ronco do amigo. Ansioso, voltava a dormir. A partir de certa hora passou a despertar não só com o ronco, mas com outro ruído estranho. Algo rosnava e patinava no pé da árvore tentando, ora subir pelo tronco, ora pelo galho mais baixo. Olhou para baixo e percebeu um par de brilhos que pareciam dois vaga-lumes no meio do escurão. Era ela, assustada. Confirmou Pi, já desperto. Viu que sem asas não tinha como incrementar um escape aéreo, portanto, procurou se acalmar e ficar acompanhando o movimento do bicho de um lado para o outro. Mais calmo, sacava fotos em baixa velocidade com o diafragma todo aberto. Aquele clique da Pentax K1000 já provocava alerta na fera. Pi voltou a dormir, mas o ronco do vizinho continuava e lembrava o Guariba. Quando aumentava o volume dos trovejos, a onça se irritava mais e forçava nova escalada, felizmente sem sucesso. Nestor, impávido, esperava passar, pacientemente, a noite mais longa de sua vida.

Ao amanhecer o ronco amainou e a onça, sedenta, resolveu beber água num riacho distante dali. Foi quando Pi determinou que descessem. Tremiam mais que bambu em vendaval. Pi usou a trilha de segurança, uma sequencia bem definida de passos que, com cuidado e velocidade guiaria-lhes de um marco a outro sem se perder. Assim, liderou a fuga quase aérea, mas deixaram para trás as redes e pertences.

Em Corumbá lembrou de sua Pentax, empunhada na rede. Programou a volta para resgatar os pertences. Agora mais preparado e com Pi no tiracolo, chegou ao local à luz do dia. Achou seus pertences apenas remexidos e sua K1000 intacta no cume da árvore. Voltou pra casa satisfeito. Guardou na memória o resgate e o momento de aflição sem precisar se deseperar.

Certo dia realizou uma operação chamada mediastinoscopia e, inesperadamente uma hemorragia avermelhou o campo visual. Nada enxergava e não conseguia controlar o sangramento, pois o espaço lembrava o buraco de fechadura. Inicialmente bateu-lhe um uma sensação de derrota, impotência, depois optou por uma manobra simples, retirada das cabeceiras de “Top Knife”: deixar um tufo de gazes comprimindo, até parar o sangramento. A hemorragia estancou, mas teve receio de tirar o tufo, ressangrar e perder aquele inocente. Lembrou-se do safári. Deixou a gaze comprimindo para voltar e retirar depois - dias depois-, quando tudo estivesse mais calmo.
Labareda, do bando de Corisco

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