segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Cesta do enfraseamento: “Je suis Charlie”



“Os dois nasceram perdidos...”
Milton Hatoum, em: “Dois Irmãos”
Se poeta fosse, gostaria de fazer versos na ponta lápis. Acho o lápis, aquele que a gente se acostumou a usar na alfabetização, a forma primaz de se desenhar ou poetizar a liberdade. Vejo nos desenhos de Pablo Picasso, ou mesmo no “Homem Vitruviano”, de Leonardo Da Vinci, a expressão do lápis exatamente como eu gosto. Tenho a impressão, mal posso afirmar, que todas as obras de arte, mesmo finalizada a pincel, foram iniciadas a lápis, pois parecem ter a plumagem do desejo de voar na liberdade de criação.

O problema é que a mão que afaga o lápis é a mesma que engatilha o fuzil. E o que pode sair da ponta de fuzil é pólvora, culminando em desenhos bizarros, na cor vermelha, incrustados no chão.  

São duas mãos que desatinam ou dois irmãos que se digladiam: o islâmico fundamentalista que se caracteriza pelo comportamento sórdido, calculando friamente fuzilamentos sob as barbas de Maomé. Outro irmão, o cristão, que vive a liberdade de expressão, por isso paga com sangue todo o custo de tal liberalidade. Tal convivência caminha lado a lado e jamais imaginaríamos todo esse ódio flanando pelas margens do Sena a ponto de se ouvir estampidos além de suas imediações.

A Paris tão romântica de cenários de cinema, quadros impressionistas e romances viu-se pintada de vermelho rutilante, as cores da violência indomável e inescrupulosa entre dois irmãos de mesma identidade cromossômica.

Ao retratar “Dois irmão”, de Milton Hatoum, vê-se na Manaus de outrora um cenário paisagístico que escondia a difícil convivência entre dois irmãos de ascendência libanesa: “Lá fora piavam pássaros e pelo vão da janela eu via galhos envergados e frutas maduras espalhadas no chão sujo do quintal”. O quintal esconde, como o desenho de um lápis, o enxerto Naturalista da obra, cuja realidade é levada aos extremos da sede de vingança.

O simples olhar a este enfraseamento, revela a mais pura descrição de uma paisagem que habita qualquer quintal de cidade amazônica, mas que representa apenas flores escondendo uma obra espinhosa, ao revelar a alma perversa de dois irmãos (gêmeos) cujo ódio revela-se apimentado num e sórdido no outro. O interessante da obra e que me faz admirá-la é essa camuflagem bucólica que Hatoum prepara por trás de todo aquele sentimentos de ódio entre os gêmeos. Uma história que relembra os bíblicos Caim e Abel. Yaqub além de mais ressentido e rejeitado, era também o mais bruto, o mais violento, pois matutava o silencio como maneira mais eficaz que uma resposta escrita ou uma vingança esculachada. Yaqub tinha o perigo e a sordidez da ambição calculada, e caminhava seguindo os passos de seu irmão Omar, mimado pela mãe, fazendo lembrar a poesia oportuna de T.S Elliot (tradução de Ivan Junqueira): 
"Somos dois apenas, lado a lado,
mas se ergo os olhos e diviso a branca estrada,
há sempre um outro que a teu lado vaga
a esgueirar-se envolto sob um manto escuro, encapuzado."

3 comentários:

Abel Sidney disse...

divulguei no Google+:

merece leitura o que o Roger andou rascunhando.

já fiz minha colheita poética.

em tempo: ele não é dado a panfletar...

das anotações poéticas eis o resultado:

- Tenho a impressão que todas as obras de arte, mesmo finalizadas a pincel, foram iniciadas a lápis, pois parecem ter a plumagem do desejo de voar na liberdade de criação.​

- a mão que afaga o lápis é a mesma que engatilha o fuzil​

- dois irmãos de mesma identidade cromossômica.​

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Um trago de palavra-benta é suficiente para destravar meu traços de escriba... Insisto por ter amigos como o Abel Sidney, que trago no bolso da frente desde o tempo que caminhava com lápis, apontador e borracha.

Sérgio Lima Jr disse...

" a mão que afaga o lápis é a mesma que engatilha o fuzil "
Refletindo à luz desse possivel paradoxo, acredito que o respeito ao próximo, no sentindo mais amplo, não pode ter sua fé insultada, à despeito da " liberdade de expressão", assim como matar em nome de Deus !
Desculpem-me, foi apenas um desabafo, inspirado pelo belo texto do Amigo Roger !