quarta-feira, 18 de março de 2015

Dos sustos de cada dia feito luta de classes



Na tevê, a presidente Cristina Kirchner aproveitou a entrega de novos trens para a malha ferroviária argentina e deixou escapar um chiste, em que dizia que as mulheres, aos 20 anos, são lindas, mas, já aos 50, têm de topar qualquer negócio. A metáfora infeliz começou a ecoar mais alto dentro de mim que a boa iniciativa do governo, que se esgoela pra reestatizar o que havia sido desmantelado pelas bizarrices neoliberais.

Pluft! Uma postagem no tuiter, por fim, parecia que estava inquieta como eu e não duvidei em tentar um pingue-pongue com o autor. O professor Andrés Rosler me reconheceu como sua ex-aluna e fez questão de dizer, obviamente depois de algumas provocações acadêmicas, que me desejava o melhor dos mundos, o da sanidade, aquele em que podemos nos surpreender com fatos do cotidiano, sem que isso impeça nossa observação racional das situações.

Do alto de um amor platônico, eu poderia dizer que o adoro. Um termo apropriado para a compreensão comum de amor platônico.

É certo que podemos inquietar-nos cotidianamente com fatos aparentemente triviais. Fatos que poderiam simplesmente passar despercebidos por nós, num primeiro momento. Mas devo admitir que ainda me encanto quando sou provocada por outrem tão sabiamente. Quando uma pecinha fragilmente sustentada nas minhas certezas deslancha uma derrubada geral nas demais peças e me exigem reconstruir estruturas. E é isso o que me animou nas classes de Rosler. Ao mesmo tempo em que ele afirmava e me fazia sentir segura, numa sala de aula de gente impávida e quase muda, imediatamente ele lançava a dúvida. Uma aula extrema, posso classificar. Tensão a cada instante. Daí comecei a acompanhar suas ruminações no mundo virtual. No blog , no face, no tuiter... Quase uma perseguição. E a mesma sensação: nunca posso ter certeza de qual a posição dele sobre o assunto em questão. Mas não é assim que se constrói conhecimento? Creio que sim. É nesse conflito entre a certeza e a dúvida. Uma espécie de luta de classes, necessária para garantir transformações.

Já me assustei com as sequências de linchamento, na Argentina e no Brasil, quase concomitantemente, na grande mídia. Como era de se esperar, outras notícias e interesses chegam para atropelar a possibilidade de se elaborar o tema.

Agora me assusto com a série de desaparecimentos e mortes de garotas no país hermano. Tentei um diálogo virtual com um colega navegador, mas não ia num caminho muito próspero. E o barco encalhou.

Batata! O que a grande imprensa trata como caso isolado, noticia como fato corriqueiro, tornou-se matéria-prima para o começo de uma discussão que poderia ir mais adiante na matéria da Agência Nacional de Notícias Jurídicas – Infojus . Sim, existem elementos comuns nesses desaparecimentos e assassinatos e não é um matador em série. A matéria se deteve na estrutura dos acontecimentos e em uma trilha histórica. Eu arrisco mais: machismo.

O machismo é responsável por uma vasta paleta de crimes sórdidos. Mas o bicho é o mesmo. No Brasil, pelo que lembro, as manifestações dele têm se exibido em várias vertentes. E lembro de experiências, como aquela, em Pernambuco, em que as mulheres combinaram de fazer um apitaço sempre que alguma delas estivesse sendo agredida pelo companheiro em casa. A Lei Maria da Penha foi, sim, outro avanço. Mas a princípio, enquanto não podemos deitar em berço esplêndido, são necessárias medidas corretivas, punitivas, protetivas, preventivas, enfim...

O mesmo defendo que ocorra com outros diferentes segmentos sociais que amargam a execração por uma cultura ainda tão enferma. Levei um susto tão grande na cozinha de casa enquanto escutava uns caras na rádio Rock and Pop que a vontade era de jogar o aparelho na parede. Pra não arriscar um acidente gastronômico, preferi tuitar pra eles. Isso é cumplicidade com os crimes! Isso não tem graça nenhuma!

Acho que o preconceito e as manifestações jocosas contra negros não devem ser crime na Argentina, porque, se fossem, esses caras teriam sido apeados do estúdio direto pra cadeia. Eles e o diretor da rádio. Horrendo! Não deve ser à toa que os negros que se pode ver em Buenos Aires são estrangeiros recentes. Os demais devem ter sido assassinados como milhares de indígenas.

Definitivamente, não sou dotada da virtude da tolerância. Ainda morro disso.

2 comentários:

Marise Rocha Morbach disse...

Tenho pensado uma questão Erika - e daí a fuga do facebook, talvez por long time - de que é preciso se aproximar deste fenômeno que estamos chamando de intolerância. Penso que é do que se trata, mas com outros elementos agravantes e com uma excessiva voz dada aos intolerantes, aos machistas, aos assassinos: nas redes a coisa tá beirando o crime. se crime já não for.
Não dá para fazer o papel de tolerante no sentido religioso: é preciso dar limites: e claros; penso que seu texto vai por aí, e cada vez melhor. Bjs e cuidado; muito cuidado.

Erika Morhy disse...

Sim, você tem toda razão, Marise, querida. Não creio que minha intolerância beire a tragédias. Assim espero! Tomara que ela possa, inversamente, contribuir para promover transformações saudáveis onde quer que esteja. Por um mundo mais respeitoso diante das diferenças ou supostas diferenças.
Particularmente, nunca me senti insegura aqui como me sinto em Belém. O que poderia ser estranhíssimo. Como me sentir mais segura numa cidade infinitamente mais complexa que minha terra natal? Pois bem, sei que também existem outros aspectos a serem levados em conta, que não apenas o perfil da sociedade, seu momento histórico e cultura, e igualmente percebo algumas alterações módicas no meu pequeno entorno que podem ser sinais de alerta. De todo modo, estamos na chuva e é inevitável se melhor.
Obrigada pela tua leitura gentil e observações, sempre muito úteis pra animar meus pensamentos. às vezes é muito chato pensar sozinha. É legal compartilhar e colocar à prova nossas questões.
Obrigada mesmo.
Beijo grande.