domingo, 22 de março de 2015

Enfraseamento: O Acre ainda resiste

"O rio é uma incógnita"
  Tiago Martinello, jornalista acreano 
        
Pessoas dignas dos seringais, sob lágrimas, dizem que o Anno Domini 2015, o ano da última gravidez do rio Acre (perímetro abdominal de 18m), o pai foi Satã. Foi duramente marcado por chuvas e trovoadas intensas para o povo de Chico Mendes, por conta do rugir da natureza, tão esquisito quanto Guariba no cio a procura de seu macho.
A enchente do rio Acre afogou a última galinha que restava no fundo do quintal de cada morador; a preguiça de estimação não desceu do cume das árvores e o filhote de Sucuri debruçou-se no punho da rede de Justino.

Neste março, esse pedaço abandonado da terra encolheu e ficou mergulhada nas águas doces do mundo. Foi por conta de um relâmpago que reluziu nos céus e atingiu o peito de um crucifixo que ficava pendurado no lado de fora de uma casa nos cafundós da floresta, num ponto equidistante entre o Purus e o Juruá a montante do distante Amazonas. Homens da terra Aquiri murmuraram, aferindo que os deuses da chuva e seus santos haviam esquecido suas terras durante uma sesta, após se empanturrarem de açaí com camarão depois de uma ceia com peixe-frito e a última colheita do arroz branco.

Contaram os ribeirinhos a um repórter investigativo que, por mais de 10 dias, a água de uma fonte diabólica era espremida do céu e caia no chão feito uma enxurrada oceânica. Viajantes de embarcações diziam que o Cramulhão tinha aparecido em bosques e em lugares secretos às margens de rios e enseadas, e semeado praga pelas redondezas.

Durante aqueles dias, o céu escurecia de dia, e, à noite, estrelas caíam no choro, jorrando lágrimas, de modo que até foi visto um cometa anunciando o Armagedom.

No ano anterior, as colheitas nos campos já estavam minguando por conta das queimadas ressaltadas pelas intransigências na calota craniana dos homens e da Antártida. Isto já era prenúncio de nuvens cinzentas carregadas de furor.

Choveu como nunca, e junto com o desgelo da Cordilheira, Satã assoprou, o rio encheu e arrastou por sua corrente pontes, casas, ruas e esperanças. Humanos desapareceram junto com as últimas galinhas daqueles quintais.

 Quando as águas baixarem e a trégua for dada, vou escrever um poema que fale da vida acreana, onde meu DNA plantou um pé de flor que carrega espinho no talo.

Labareda, do bando de Corisco.

4 comentários:

Abel Sidney disse...

Não será por falta de notícias que você empunhará novamente o lápis para falar do seu Acre menino.

Meu cunhado chegou de lá e disse que águas baixaram.

Aguardaremos, portanto, que mantenhas a palavra em pé!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Estou sem fôlego. Quando melhorar - o fôlego - e entrar em sincronia com as águas, desgarrará de mim o talo da palavras. Deixa vir.

Erika Morhy disse...

Gente, mas que texto bacana! Parabéns a Labareda. Que mande notícias sempre, pra meu deleite.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Labareda só se arrisca por aqui, aos domingos, quase sempre. Quando desaparecer é por estar incrustado em textos científicos. Foi de lá que Labareda, filho da liberdade de escrever, começou a mundiar. Depois vocês me receberam por aqui: encostei, gostei, flanei e por aqui fiquei. Tal como Forrest Gump, nunca mais parei de andar com as palavras... Vocês foram os culpados. Obrigado. Suas palmas também me são deleites.