“Havia o
céu. Eis tudo.”
Ruy
Barata, poeta, em: “Linha imaginária”
Gente nascendo na Santa Casa de Misericórdia é cena
corriqueira há século e meio. E quando crianças coroam por lá, o azul tende a
ficar celestial. Até hoje, quando caminho por aquele entorno percebo, mirando o
céu, sempre uma rodela azulzinha e sem nuvens. Penso logo que o firmamento anda
se contraindo feito útero de parturiente.
Tudo isso me veio à memória porque nos idos de 1985 vivi
momento de glória com a minha turma da disciplina de pediatria. Tínhamos aula
prática de sala de parto na Santa Casa. Vi crianças nascendo a rodo. Sentia na
sonoridade dos alaridos, assim como aquele inconfundível cheiro de placenta, um
sentimento de me deixar estupefata e sem fôlego. Não saberia descrever por
palavras, mas posso criar um estado de sentimentos, se permitirem, pois não é a
história que me fascina, mas a alma que veste a história.
Os pirralhos já nasciam aos berros e logo-logo eram
embrulhados pelas enfermeiras numa manta espessa para protegê-los do frio da
sala de parto. Posteriormente eram colocados sob luz artificial para
reaquecimento, afinal de contas abandonaram seus iglus onde tinham uma vida
mergulhada numa piscina de água morna e diáfana. A partir de então assumiam um
ritmo diferente daquele que a mãe natureza acabara de impor, ou seja, um frio
equivalente ao do polo norte e um estridor ao respirar. Passado aquele momento
o choro dava vez ao silêncio da respiração.
Houve o momento que o professor Maués, lendo meus olhos,
chamou-me para “aparar” uma criança prestes a surgir pelo canal do parto. Num
misto de sorriso pálido e satisfação, falei: - Eu, professor? “Você mesmo, Ana”,
respondeu. Derreti-me por dentro. Estava apavorada, pois como qualquer um,
tinha receio de deixar a criança cair e se espatifar no chão; foi o que me
passou pela cabeça.
As lágrimas daqueles choros representam o apelo de se
abandonar aquela vidinha suburbana latejando no líquido amniótico e ter que se
agarrar no mundo, com unhas frágeis e sem dentes. Mas ali
estavam os pediatras dispostos a recebê-los de mãos abertas e eu me via
enluvada naquele ritual.
Até hoje nunca vi sofrimento nesse convívio, assim como
soberba por parte de médicos e enfermeiras. O que via era dedicação e doação,
extratos do altruísmo. Estava ali apenas para interpretar o que acabara de rabiscar
na sala de aula, sem atrapalhar o sopro da vida. Eu era apenas uma curiosa menina
apaixonada pela ciência e, ver aquilo me causou paixão. Foi o visgo que me
atracou na profissão e até hoje respinga no meu sentimento e memória. Sinto
saudade daquelas primeiras linhas tanto quanto os passos que agora desfilam
pela lembrança fosca.
Graças a Deus tudo correu bem. Senti-me maravilhada por fazer
parte ativamente desse momento mágico. Esse acontecimento consolidou minha
vontade de ser pediatra e conviver com grandes mestres. Lembro desses passos,
ainda como se fosse hoje, pois passei do pavor ao total deslumbramento quando
segurei aquela vida. Portanto, nasceu o perfume com a floresta. E,
seguindo orientações técnicas, foram tomadas todas as ações necessárias em uma
sala de parto.
No dia seguinte fui visitar a criança e, para minha surpresa,
chamava-se Ana.
Sempre me pergunto: por onde andará aquela Ana?
Relato epidérmico de Ana Aparecida Figueiredo Seixas, pediatra
6 comentários:
Prima, adorei seu texto, me fez lembrar as aulas do Profº Bahia, na Santa Casa !
Este relato me faz lembrar minha vida acadêmica na Santa Casa de São Luís!
O resumo de toda a minha vida está naquelas enfermarias e centro ciruúrgico!
Isso é a vida...
Sergio, todos voltamos ao umbigo de nossa formação quando lemos relatos como este.
Elias, velho amigo, quem nunca teve uma Santa Casa na formação terá dificuldade de entender o que a Ana Aparecida quis soluçar com as palavras.
Ao meu olhar de pai de cinco filhos e de uma filha fazendo Medicina (além dos outros também seguindo pelas trilhas da saúde) se junta ao de poeta, que se achega de manso a esta prosa poética do Roger Normando e vai se aconchegando, por suas mãos, à Ana, a pediatra encantada por criança...
Ao ler, ainda, a biografia de Max Perkins, nestes dias, me pergunto: será que cabe a mim descobrir e publicar autores imprevisíveis (e quase nada visíveis por conta do jaleco e outros disfarces)?!
Não há respostas fáceis em se tratando destes autores fora-de-esquadro, mas cheios de compassos e ritmos.
Abel, obrigado. A Ana não para de se emocionar por conta do seu modesto relato. Agora acabo de emocionar por seu comentário. Obrigado! Obrigado!
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