E mal
começava 1982 e já tínhamos o ano marcado em nossos corações - hoje cinqüentões.
Havia apreensão antes de o listão soar, mas era puro receio de deixar tudo na
memória povoada de fantasmas. O ouvido incrustado no rádio seguia aos ovos espatifados
nas cabeças cheias de trigo, escorrendo nos rostos estampados a alegria estendida
a pais e amigos. Aquela gororoba no cabelo era reverência ao ano que começaria
na dimensão da universidade, ou seja: cuca controlada e Pinduca na vitrola.
Foi o
início da travessia, decerto. A partir dali não queríamos morrer na praia e apenas ficar
olhando o mar revolto espumando sobre areias. Queríamos mais. Àquela altura tudo
isso também tinha gosto de liberdade - emancipação, diria.
Inicialmente
veio a satisfação de conhecer disciplinas básicas e amigos que passariam a ser grudes
inseparáveis. Depois chegaríamos ao velho casarão de Santa Luzia para perceber
que a maioria carregava as mesmas expectativas, esperanças e a sede de
aprender. Fomo-nos conhecendo e formando bandos rumando num destino só, feito
nômades. Umas mais tímidas, como eu, outros mais
extrovertidos, engraçados, intelectuais. Mas todos no bando.
A cada
semestre de encontros e reencontros eram motivos de regozijo ao rever aqueles rostos
que iríamos acompanhar por mais algumas escalas. Desencontros e partidas
ocorreram - de fato, uns e outros tomaram nortes diferentes e se destinaram a
outras aragens.
Os termos
técnicos que paulatinamente íamos degustando e dicionarizando passavam a ser
rapidamente incorporados aos diálogos. Aprendemos também, por força da
necessidade, uma nova escrita, com abreviaturas horripilantes que só nós
decifrávamos, sem falar dos desesperados em véspera de provas.
Amadurecemos
mais quando conhecemos o sofrimento alheio, defrontando com a dor dos pacientes
que nos fitavam com olhar suplicante, pedindo o colírio da cura. Tais marcas nos
acompanham até hoje, cujas bases estão enraizadas nos porões da Santa Casa,
onde regamos a misericórdia e nos escondíamos das greves até esta chuva passar.
Mas a
viagem tinha tempo findo e chegava a hora tão esperada. Era canudo na
mão, coração na boca, peito aberto, pernas trêmulas e alegria indisfarçável. Na
voz de todos, cada pomo esbravejava na hora cálida da sintonia
telepática do juramento de Hipócrates.
Findou quando descemos
as escadarias do Theatro da Paz. Recomeçávamos outra travessia: alguns para
terras mais distantes, outros mais pertos; alguns estiveram sempre juntos,
outros nem tanto. Uns tiveram rotas alteradas, mas na esquina seguinte reencontramo-nos
pela via virtual. E que felicidade quando esse encontro passou a ser físico e
voltamos a ser bando.
Em cada ruga só víamos os mesmos rostos juvenis que nos transportavam à época, tão perfumada
em nossa paisagem, levando a sensação que não existiam tais rugas e grisalhos
cabelos. Estávamos
realmente anestesiados pelo óxido do riso. A alegria que nos farfalhava também
guardava a tez que ficou no retrato em branco e preto emoldurado na sala de jantar.
Havíamos formado um novo elo de amizade e retomada a velha convivência, graças
ao solavanco da tecnologia.
E estamos
aqui...
E se a tal
máquina do tempo viesse nos buscar pelo colarinho do jaleco, eu,
particularmente eu, acocoraria-me diante da nobreza da amizade e me achegaria
um pouquinho mais perto de cada precórdio para auscultar com mais intensidade o
ruflar de cada sístole de cada outro-um.
Relato transepidérmico de Ana Rosa Bosi, médica na área de Saúde Pública, (Novo Repartimento, sudeste do PARÁ)
4 comentários:
Um relato sucinto e emocionante. Um universo de emoções. Uma Colcha de retalhos de fatos e emoções. Fiquei tocado. Obrigado Eogee Normando. Obrigado Ana Eosa Bosi.
Obrigado, Luiz. Você é um dos sujeitos ocultos nessas mal traçadas linhas de travessia.
Ana Rosa e Roger, muito obrigada por trazerem à tona lembranças de momentos tão marcantes de nossa juventude! Tenho repetido que éramos felizes e sabíamos. E que bom que a vida nos deu a oportunidade de nos reencontrarmos na maturidade. Agora temos a incumbência de construírmos novas memórias. Mãos à obra!
Dolores, estamos esperando a tua lembrança contextualizada. Vamos lá. Você e tantos outros...
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