sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Formigamento de adolescente - Reminiscencias de Belém

“...És minha morena, és a flor que cheira o Grão-Pará”
(Chico Sena, em: "Flor do Grão-Pará")

      Mulher nenhuma tem sentimento na mesma concentração química, na mesma osmolaridade, por isso, mulher não tem fórmula, não se reza cartilha. Decora-se tabuada, rua e a capital da Síria, mulher não. A poesia, assim como mulher, assim como o amor - também não. Poesia é o retumbar no peito ao se ler Drummond e Leminski. Mulher também. E beber o caldo da mulher desejada como se fosse todo o licor do amor pode causar formigamento incurável pelo resto da vida.
      Tenho um desses formigamentos para contar - comicha há tempo. Começou quando eu ainda morava no interior do Acre. Lá tive infância calma, mas já abicorava umas pequenas de longe. Algumas me viam como aquele riacho de águas calmas que passa por debaixo da ponte do Jardim de Monet, em Giverny, apreciada naquela pintura impressionista do museu D’Orsay. Às vezes eu também era poço fundo, feito cacimba de quintal. Neste eu me via em outras meninas. 
    Tenho essa pagina a ser colada no futuro do pretérito do verbo hoje, assim, fatalmente assim, entre o singular e o plural de minha memória, pois degustei benquerenças no escuro de minha alma ressabiada; escorreguei em fartas coxas divagadas em sonhos; brechei vazios da minha de minhas mãos cálidas e lambi os beiços da euforia com mel de açucena.
        Em seguida mudei pra cidade grande e senti a catarse. Foi um choque em alta voltagem de corrente alternada. Tudo é mais voraz, célere. Desde buzina dos carros, arranha-céus e do amasso nas meninas. Desta parte de Eros relembro que conheci o cinema de Maria Schneider, em “último tango em Paris”. Nela revi amores morais e imorais.
         Foi quando certo dia, empurrado pelo Tico-Mico, parei nas imediações da primeiro de março, centro da cidade, ao lado da sede dos correios, logo após a sessão de “último tango...”. Era domingo tarde da noite. Lá havia umas luzes vermelhas que borravam os batons rútilos das putas. Rolava muito brega alteado em estridentes agudos e, à meia luz, cigarros esfumaçavam a penumbra. Dedos e unhas pintadas estavam em consonância com lábios chameguentos, demasiadamente pidões. Era o beco onde procurava minha Schneider.
          Eu me achegava, em passos tímidos, àquele destino. Já próximo, ou melhor, com um pé dentro, um estampido ressoou da esquina... Gente corria pra todo lado. Fiz os kilômetros de vantagem que separavam meu quarto daquela cena de faroeste em velocidade de raio. Nem vi Tico-Mico. quando olhava à frente, parecia que a terra, ela sozinha, corria em errância. 
       O meu quarto, por uns tempos, transformou-se em cárcere privado. Papai e Mamãe desconfiaram, os irmãos não. Sempre que recordava o zunido, vinha-me o pensamento daqueles lábios cheirando espoleta dos revólveres da infância. Quando me deparava com o escuro dos rincões de minha casa me encontrava frente a frente com o terror. Sonambulei dias, pois a cidade eriçava meus pelos.
         Duas semanas depois botei a cara na rua. Vi Tico-Mico pelo canto de olho. Nunca mais tocamos no assunto. Tinha a sensação que havia mais ontens do que amanhãs e o que desejava mesmo era que o tempo se adiasse.
      Dia desses nos reunimos na esquina da padaria "a Bijou" e retomamos conversas pregressas. Ao tomar uns goles de cervejas puxei pela memória. A dele falhou, mas no olhar por cima dos óculos houve denúncia. Ele ainda está encarcerado no próprio passado, apesar de escapado daquela bala perdida. Percebia apenas sombra nas respostas dele.
         Belém espavoriu minha adolescência e me faz, nesse canto do relembranças, tentar ser abduzido àquela vida brejeira de rever amores vis que a precederam. Mas a Morena cidade cravou em mim a adolescência e os ganhos, de tal forma que eu não mais suportaria abdução e distância e, tal como um cego no meu próprio destino misturei os tempos do passado com os tempos vigentes. Deu em saudades polvorosas...

11 comentários:

Erika Morhy disse...

Sou admiradora incorrigível do saudosismo. Ou seja, adorei teu texto, amigo.

luca rigamonti disse...

Gostei. parabéns

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Erika, destes 400 anos de Belém, o que mais vale é o saudosismos que tu tanto glorificas.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Luca, goste sempre... volte sempre. Feito a gaivota que segue navegações, volte sempre. Feito a memória desvairada entre a belle époque e o entardecer no cais do porto, volte sempre.

Paulo Storino disse...

Seus textos são maravilhosos meu Amigo, assim como foram nossas resenhas à beira do campo. Sou seu fã. Abraços.

Unknown disse...

Show

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Paulo, beira de campo e bar são dois lugares formigantes para se preparar a base literária. Como tantas vezes resenhamos, tornamo-nos personagens dessa convivência. Obrigado pelo generoso comentário...

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Chico, paladino da dinastia Chicolandia, venha sempre. Puxe a cadeira, sente e transforme as madrugadas atônitas em tônicos literários.

Unknown disse...

Caro Roger, suas relembranças iluminam nossos caminhares, e como que justificam nossos retardares de tortuosas andanças deste e de outros tempos. Continue firme, velhão. Estamos sempre ávidos por esses falares. Forte abraço.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Então, sigamos.

Sérgio Lima Jr disse...

"E beber o caldo da mulher desejada como se fosse todo o licor do amor pode causar formigamento incurável pelo resto da vida.", amigo Roger com esse trecho vc confessou que seu tal "formigamento" ainda te abicora intensamente ! Kkkkkkkkkkkkkk
Seus textos são uma delícia, como o "caldo da mulher desejada" !!!!