Ormindo, um
profissional liberal de 50 anos de idade, treinava com afinco e
paciência, durante os raiares do sol, pois
se desafiava a fazer em 50 minutos o trajeto de 10km da corrida do Círio de Nazaré.
Preso a números, seria Ormindo Pimenta 50/50, candidato a: homem inteiro
para a vida.
O esforço
exigido para treinamento de corrida sobrecarrega a musculatura e as
articulações dos membros inferiores. O impacto repetitivo de cada passada
transmite ao torso forças estimadas em duas a três vezes o peso corpóreo. A
tendência é que, a partir de determinada passada o indivíduo comece a sentir
dor e certo grau de irritação. Ormindo precisava entender tais fundamentos para
seguir treinando para a corrida do círio, que ocorre uma semana após a
procissão de Nazaré, em Belém-PA. As últimas versões do
evento têm exigido dos corredores de rua cada vez mais empenho e perfomance, por isso Ormindo se dedicava
com afinco.
Num dos treinamentos resolveu acompanhar, no seu ritmo,
o cortejo do círio fluvial, que se dirigia, por terra, ao distrito de Icoaracy.
A quilométrica fila de carros atrás da berlinda estava mais para engarrafamento à paulista que procissão de fé. Eram roncos dos motores e buzinas os cânticos de
louvores. Uns querendo passar pelo outro, enovelando o trânsito; outro por cima
de calçadas e acostamentos por onde Ormindo treinava; gritos e xingamentos não faltavam
apesar da sacralidade do evento. E, apesar do caos, Ormindo seguiu determinado.
Certa altura, o cortejo da virgem e Ormindo
parearam. Ele se deslumbrou com aquela imagem e se sentiu vestido por aquele
manto e protegido de todos os males. Aproveitou e, com braço direito hasteado
após o sinal da cruz, agradeceu a morada que conseguira levantar no último ano.
Ormindo calçava tênis, camisa dry fit e calção brancos. Foi ficando para trás junto com os carros
e toda aquela procissão, até perceber que estava incomodando. Buzinas e reverências
ao xingamento faziam parte dos bordões de quem estava atrapalhando trânsito e,
consequentemente, a procissão. Carros tiravam fino, e teve um que fusca quase o
atropela. Eram mais de cento e meio, sofreúdos.
Cirandou
uma idéia ao ver a frente um vendedor de fitas e colares referentes ao círio de
Nazaré. Foi lá, gastou dez dinheiros e se fartou de adornos. Depois seguiu
correndo os quilômetros que faltavam. Já enfeitado de romeiro, começou a
perceber que os retardatários começaram a lhe oferecer água, prece, e diversos
apoios, inclusive vozeavam: “vamos lá, você vai conseguir pagar sua promessa”.
Carros desviavam para dar passagem àquele promesseiro. As fitinhas se
converteram em passaporte, abre alas, salvo-conduto, marcas indeléveis de fé,
respeito e compaixão. Ele se perguntava:
precisava? No fundo, mesmo envolto em tantos sentimentos, estava a matéria - souvenirs.
Percebia-se
ali a força metafísica homo, um sinal
de alerta a quem ousa desafiar a corda que atraca a fé ao pé do homem. Ao
finalizar o trajeto, percebera que estava na corda bamba entre a crença e a
descrença, sem conseguir apalpar a fé concreta desse povo que se desfaz em chamego
diante da imagética mariana. Comoveu-se a ponto de rasgar o coração - frágeis cordoalhas-, como um bibelô no cume
da prateleira. Por fim, pediu à Senhora que lhe desse sabedoria pra entender a
variedade de crenças que conduz a humanidade.
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