"O horror bestial dos presídios, dominados por facções criminosas,
choca o mundo e impõe desafios enormes ao governo e à sociedade"
Revista Veja, em 11 janeiro de 2017.
A gente tenta não escrever sobre a violência, pra não ficar escravo do tema, mas eis que a televisão, os jornais, a conversa com o vizinho e aquele filminho no zap da carnificina de Manaus e Boa Vista destripando um tórax, vem e atingem o fígado e catapulta qualquer Quintana que porventura tente alcançar minha veia Porta.
A barbárie de Manaus leva-nos a refletir sobre os caminhos que tomamos pelas principais artérias da cidade-irmã, Belém, quando passamos pelas diagonais, transversais e vielas, até aportar em nossos destinos. Tremulamos debaixo dos semáforos em vermelho e ficamos catando estilhaços daquela imagética carcerária em nosso imaginário sob o medo de sermos aparados por uma
bala no pescoço, por conta de desavença entre duas facções que brigam pela
geografia do tráfico. Como não existe muro, nem área de demarcada, tem-se a sensação que, por uma dessas diagonais um cartucho possa se desprender de um cano de revólver e atingir minha carótida e todos os meus quase seis litros de
sangue vaze para debaixo do tapete (do carro e depois da grama do cemitério) e se
torne um drama desmesurado (O sinal se mantém vermelho; a zona é vermelha).
Não existe
um muro a prova de bala que separe esses dois mundos e a gente possa escolher ficar no lado quieto, por isso essa “nóia” não
me sai da cabeça e acaba me apequenando diante do terror. Estamos inseguros
quando andamos na rua e sinto-me um vira-lata que levou um chute no traseiro, que ainda tem que cuidar do lixo nosso de cada
dia, sem direito ao
rosno.
Numa manhã de domingo, em uma das enfermarias do principal Hospital de Trauma da cidade estavam,
acamados, um policial e um meliante. Um de frente pro outro, na mesma
enfermaria, separado por um metro de paz. Junto com os
estudantes, na hora da visita, passamos entre eles, ou seja, no meio do fogo cruzado - virtual que fosse. Expliquei o fator social de ambos e todos ficaram com os
olhos esbugalhados.
O baleado no tórax é suspeito porque tatuou na perna esquerda a figura de um palhaço, código dos que matam policiais. Com medo, ao lado de sua mãe, ele não tirava o lençol da perna pra tomar banho e nem abria o olho para ser examinado, simulando sono eterno, com receio de ser identificado. O policial, por sua vez, tinha levado um tiro no lobo frontal e apresentava um comportamento doentio para um paciente hospitalizado: a euforia. Todas as vezes que entramos na enfermaria ele nos saúda com um estrondoso bom dia e nos sapeca toda sua fanfarronice pela felicidade de ter sobrevivido após tiro no crânio.
O baleado no tórax é suspeito porque tatuou na perna esquerda a figura de um palhaço, código dos que matam policiais. Com medo, ao lado de sua mãe, ele não tirava o lençol da perna pra tomar banho e nem abria o olho para ser examinado, simulando sono eterno, com receio de ser identificado. O policial, por sua vez, tinha levado um tiro no lobo frontal e apresentava um comportamento doentio para um paciente hospitalizado: a euforia. Todas as vezes que entramos na enfermaria ele nos saúda com um estrondoso bom dia e nos sapeca toda sua fanfarronice pela felicidade de ter sobrevivido após tiro no crânio.
Nós, ali no
meio, no meio do redemoinho, representamos todo esse belicoso
detalhe da vida social que estamos exposto e, sem deixar de nos atormentar pela purga espiritual, empunhamos a ordem do dia.
Foi quando o sinal abriu e peguei o beco; alteei o som do carro para ouvir o saxofone de Coleman Hawkins, Charlie
Parker e Lester Young, deixando a voz de Sarah Vaughan se liquefazer e adentrar pelos poros e até bater
aqui no meu lobo frontal e fazer com que aquela bala tome o rumo do inferno e eu recupere minha euforia.