domingo, 30 de junho de 2013

O dia em que a dra. Juliana chorou

Cora Rónai, o Globo
Não sou a favor de corporativismo ou de reserva de mercado em área alguma. Acho que se o problema da saúde pública fosse única e exclusivamente a falta de médicos para regiões remotas do país, a importação de estrangeiros — cubanos, letões, belgas — seria uma ótima medida. Acontece que, do jeito que estão os nossos hospitais, essa é só mais uma medida populista, uma cortina de fumaça para esconder a verdade de um sistema falido.
Como bem observou um dos cartazes das manifestações, “importar médicos para locais onde faltam leitos, hospitais, remédios e exames é como querer resolver o problema da fome importando cozinheiros para locais onde faltam panelas, fogão e comida”. Essa síntese é exemplar; mas nada mexeu tanto comigo quanto o depoimento da médica carioca Juliana Mynssen, leitura obrigatória para quem quer saber do Brasil. O contundente texto da dra. Juliana está circulando desde o começo da semana na internet e, onde quer que seja postado, é logo seguido por comentários de outros profissionais da saúde, que relatam problemas e frustrações semelhantes.
Vejam só:
“Há alguns meses eu fiz um plantão em que chorei. Não contei a ninguém; não é nada fácil compartilhar isso numa mídia social. Eu, cirurgiã-geral, “do trauma”, médica “chatinha”, preceptora “bruxa”, que carrego no carro o manual da equipe militar cirúrgica americana que atendia no Afeganistão, chorei.
Na frente da sala da sutura tinha um paciente idoso internado. Numa cadeira. Com o soro pendurado na parede num prego similar àqueles em que prendemos plantas (leia-se samambaias). A seu lado, o filho. Bem vestido. Com fala pausada, calmo e educado. Como eu. Como você. Como nós. Perguntava pela possibilidade de internação do pai numa maca, pelo menos, já que estava há mais de um dia na cadeira. Ia desmaiar. Esperou, esperou, e toda vez que eu abria a portinha da sutura ele estava lá. Esperando. Como eu. Como você. Como nós. Teve um momento em que ele desmoronou. Se ajoelhou no chão, começou a chorar, olhou para mim e disse “não é para mim, é para o meu pai, uma maca”. Como eu faria. Como você. Como nós.
Pensei “meudeusdocéu, com todos que passam aqui, justo eu… nãoooo… porque se chorar eu choro, se falar do seu pai eu choro, se me der um desafio vou brigar com cinco até tirá-lo daqui”.
E saí, chorei, voltei, briguei e o coloquei numa maca retirada da ala feminina.
Já levei meu pai para fazer exame no meu Hospital Universitário. O endoscopista, quando soube que era meu pai, disse “por que não me falou, levava no privado, Juliana!” Não precisamos, acredito nas pessoas que trabalham comigo. Que me ensinaram e ainda ensinam. Confio. Meu irmão precisou e o levei lá. Todos os nossos médicos são de hospitais públicos que conhecemos e, se não os usamos mais, é porque as instituições públicas carecem. Carecem e padecem de leitos, aparelhos, materiais e medicamentos.
Uma vez fiz um risco cirúrgico e colhi sangue no meu HU. No consultório de um professor ele me pergunta: “e você confia?”. “Se confio para os meus pacientes tenho que confiar para mim.”
Eu pratico a medicina. Ela pisa em mim alguns dias, me machuca, tira o sono, dá rugas, lágrimas, mas eu ainda acredito na medicina. Me faz melhor. Aprendo, cresço, me torno humana. Se tenho dívidas, pago-as assim. Faço porque acredito.
Nesses últimos dias de protestos nas ruas e nas mídias brigamos por um país melhor. Menos corrupto. Transparente. Menos populista. Com mais qualidade. Com mais macas. Com hospitais melhores, com mais equipamentos, e aos quais não faltem medicamentos. Um SUS melhor.
Briguei pelo filho ajoelhado do paciente. Por todos os meus pacientes. Por mim. Por você. Por nós. O SUS é nosso. Não tenho palavras para descrever o que penso da “presidenta” Dilma. (Uma figura que se proclama “a presidenta” já não merece minha atenção). Mas hoje, por mim, por você, pelo meu paciente na cadeira, eu a ouvi.
A ouvi dizendo que escutou “o povo democrático brasileiro”. Que escutou que queremos educação, saúde e segurança de qualidade. “Qualidade”… ela disse.
E disse que importará médicos para melhorar a saúde do Brasil.
Para melhorar a qualidade…?
Senhora “presidenta”, eu sou uma médica de qualidade. Meus pais são médicos de qualidade. Meus professores são médicos de qualidade. Meus amigos de faculdade. Meus colegas de plantão. O médico brasileiro é de qualidade.
Os seus hospitais é que não são. O seu SUS é que não tem qualidade. O seu governo é que não tem qualidade.
No dia em que a senhora “presidenta” abrir uma ficha numa UPA, for internada num Hospital Estadual, pegar um remédio na fila do SUS e falar que isso é de qualidade, aí conversaremos.
Não cuspa na minha cara, não pise no meu diploma. Não me culpe pela sua incompetência.
Somos quase 400 mil, não nos ofenda. Estou amanhã de plantão, abra uma ficha, eu te atendo. Não demora, não. Não faltam médicos, mas não garanto que tenha onde sentar. Afinal, a cadeira é prioridade dos internados.
Hoje, eu chorei de novo.”
(O Globo, Segundo Caderno, 27.6.2013)

4 comentários:

Erika Morhy disse...

Reitero, mais uma vez, que, sim, todas essas palavras são justas. Mais que bonitas e sensíveis e muito emotivas, elas são justas. No entanto, o que está em questão é a prevenção, em medida emergencial. E uma demanda, na minha cabeça pelo menos, em hipótese alguma, descarta a outra, ou seja, a queixa e as demandas, que são urgentes, dos médicos que atuam nos demais níveis de atendimento. Sim, é possível fazer comida sem panela e sem fogão, muitos o fazem, sem o teor de indignidade; comunidades indígenas ou quilombolas sabem disso. Nós mesmos "importamos" deles algumas dessas técnicas e cardápios. Sigo apostando na medida. E se os médicos são suficientemente fortes para aprovar o Ato Médico, vão ser também para promover as demais medidas essenciais em seus espaços de trabalho. Só não dá para permitir que tanta gente continue amargando e morrendo porque lhes falta prevenção... Não dá.

Silvina disse...

Do texto: "O seu governo é que não tem qualidade."
Eitha! A campanha já está com nível rasteiro desde o começo não oficial.
Fonte: "O Globo" .... Claro!!!!!!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Érika, prevenção sem saneamento básico é balela... NÃO dá para discutir prevenção nesse país. Isso é engenharia, no meu modo de ver. A prevenção em medicina brasileira se restringe às vacinas e uma cositas a mais. Não acredito que seja esse, no caso, médicos, o caos da Saúde. Também não acredito em salários altos para irem pro interior. Não. Não é isso. É dignidade para trabalhar. Quanto ao ato médico, que é uma outra discussão, estou contigo: foi manobra política. Eu não concordo com essa lei do ato médico. Ela está na contra-mão do que estou defendendo. Se existe um moleque no interior onde não há médico, apenas uma enfermeira, e esse moleque tem crise asmática, a enfermeira não pode prescrever uma nebulização, pois é um ato médico. A criança fatalmente morrerá. Daí não posso defender isso, o ato médico. Nessa eu estou contigo.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Silvina, em verdade, eu postei esse texto pelo conteúdo, não pela logomarca do plim-plim, que aliás, tenho reservas. Esse conteúdo foi publicado em diversos sites e blog médicos e3 não médicos e tem receptividade em mim, pois ao analisar o quadrado de cada um, sou mais a dra. Juliana no quadrado dela.