Senhoras e senhores, boa noite.
Saúdo
inicialmente o presidente desta casa, o acadêmico Jorge Alberto Costa e Silva,
o qual, em seu nome, reitero saudações aos demais colegas médicos e membros desta Academia.
É
uma satisfação muito grande estar aqui. Recebi o convite de supetão. Na
vida o bom chega de súbito. O resto, o que desperta tranqüilo é aquilo que, sem
darmos conta, já havia acontecido. Um convite desses alivia-me os nervos e abre
as comportas de
minhas coronárias, sem deixar de ser desafiante, trepidante.
De
imediato me fez rever outro recente convite feito pelo presidente do CBC, Savino
Gasparini, para escrever sobre Jesse Teixeira para o Colégio Brasileiro de
Cirurgiões. O texto será brevemente publicado na revista do CBC.
Eu me lembro muito bem a primeira
vez que vi Jesse Teixeira. Como tantos cirurgiões de sua geração ele está
indelevelmente ligado a uma paisagem de minha vida que me assinala no espaço e no
tempo de aprendizado.
A primeira frase que eu conheci foi:
“Sinto-me satisfeito quando meus estagiários acabam o período de residência
sabendo como drenar uma pleura”. Quando li a palavra estagiário tive uma
dor em pontada ao respirar fundo. Eu acabara de chegar aquele lugar e estava me
pondo em desafio - estaria eu ali apenas com esta
perspectiva? A de aprender a drenar tórax?
A partir desta frase nasce a ideia de pesquisar sobre a
vida de Jesse Teixeira. O alvo inicial seria um desafio literário. Como era o
seu processo de criação? Ler seus textos é serpentear por um labirinto de pensamentos
de causar cuíra no juízo. Esta ideia reavivou-se depois que li um discurso
realizado no Hospital Mandaqui, ainda na década de 70, porventura da abertura
de um congresso, em que ele reconstrói a história da cirurgia torácica como um
personagem que vagueia entre a cortical e a medular de uma especialidade que todos
tentavam decifrar.
O sentido educador e memorialista de seus textos elevam
aos recônditos de uma leitura palatável. Por ser autodidata na especialidade, pois
o professor não teve professor, quanto esmero havia ao construir uma cartilha
de rotinas, escrevendo sobre o que fazia e o que criava. Tenho quase todas
guardadas em minha casa, e me foram doadas pelo próprio.
Ele descreveu cada ideia, passo a passo, ao longo de seus
mais de 50 anos como médico. Desde o Broncobar, com o famoso sinal da gota,
para diagnóstico de
doenças brônquicas por meio de broncografia, até o seus clampes e no auxílio do pulmoventilador de JJ Cabral de
Almeida, seu fiel anestesiologista. Sobre tudo isso, ele escreveu como quem
prepara seus alunos para o aprendizado. Como se fosse uma cartilha de boas
maneiras.
Tem um grifo de Emerson, escritor americano que viveu
nos idos de 1800: If we encounter a man
of rare intellect, we should ask him what books He reads. Então eu ficava
me perguntando sobre Jesse Teixeira. De que fonte literária ele bebia, ao
escrever com tanta suavidade o seu pesado cotidiano?
Por intermédio de Jesse Teixeira Neto, fui revisitar a
casa onde ele morou e rever a família, na rua Cedro, em novembro de 2016. Lá me
encontrei seus filhos Bebel, Sebastião e d. Gleusa e fui muito bem recebido. No
compartimento onde d. Gleusa se encontrava, à minha espera, havia uma grande
estante, que ocupava toda a parede e estava socada de livros. Chamou-me atenção,
entre tantos autores universais, um médico que se transfigurou em escritor:
Pedro Nava. Nava era um memorialista, e penso que Jesse Teixeira tinha a
mesma verve memorialista. Um
pouco diferente de Jesse, Nava partia do problema (a desgraçada doença) para o
encantamento com a medicina. Tinha umas expressões que lembram, entre tantos, Oscar Wilde ou o
nosso Augusto dos Anjos, em suas perplexidades de pensamentos. Jesse era bem mais
sutil.
- Que pensas da vida? Perguntaram a
Pedro Nava.
- A vida é como um anfiteatro
anatômico: aí estudamos as chagas sempre abertas, vemos a podridão, o mal, o
horror, o cancro e o pior de tudo a “hipocrisia do otimismo”, tudo num montão
de lama – a sociedade.
— Que carreira pretendes seguir?
- A medicina.
— Por que a escolheste?
Porque é a que me oferece mais encantos, porque
por intermédio dela, estudarei este emaranhado de vasos, esta reunião de
músculos, esta teia de nervos que compõem este monte de elementos
apodrecidos."
Certamente, por
morar no Rio de Janeiro e serem contemporâneos, penso que os dois deviam se
encontrar em tradicionais chás desta academia pra tomar um gole de memória e
tradição. Muito provavelmente devem estar nos ouvindo em algum canto desta casa.
- Jesse, quem é esse
tapuio, que vem lá do Norte
pra falar de ti? Sussurraria Nava, com seu humor ácido.
Os demais elementos que compunham a sua verve
literária vêm da
leitura científica e do incansável exercício profissional até lapidar todas as
ideias e pôr no
papel. É o que se chama de refinamento do cotidiano.
Mas quem conviveu com o professor sabe que a
boa leitura e a sua educação foram apenas o carretel pra ser o grande mestre, o
loquaz oportuno e o cirurgião de esmero. “Enquanto
existir algum cirurgião de tórax que trabalhe com seriedade, que busque
obstinadamente a inalcançável perfeição e que valorize a dignidade e a
elegância, Jesse Teixeira continuará vivo”, grifou José Camargo, num escrito
chamado, “Jesse Teixeira: um cirurgião”.
Para Fabio Jatene tinha também altruísmo. Ele costumava dizer que no seu serviço, "nenhum paciente era rejeitado, seja pela gravidade da doença, seja pela sua
situação econômica". Posso afirmar que num dos depoimentos biográficos que coletei,
ouvi o mesmo de seu filho Sebastião... e eu vivi isso à flor da minha pele,
quando fui seu residente.
Jesse foi presidente do maior colegiado de cirurgia da America
Latina, o CBC, com apenas 43 anos. Tornou-se não só fonte de inspiração a
muitos jovens, mas também cortejado por renomados estrangeiros, destacando-se o
canadense Grifith Pearson e vários brasileiros.
Eu confesso que gostaria de ter mais
tempo para falar do meu professor, mas não é escopo deste evento. Até mesmo
porque não é tão simples se achar palavras e sair borrifando aqui e ali para dizer
de um acadêmico. Isto aqui é um templo sagrado de pensadores, e a palavra, como
atriz, é cheia de segredos e tem seus disfarces: vem envolta em véus e o
falante tem que saber usar a pena para desvirginar o verbo. Há até dor no parto
das palavras. É quando ela vem atravessada para se abrir à ideia, como se, ao falar, ficasse
impactada na cricóide.
Essas são as minhas palavras, transfiguradas
em realidade, ressignificando a dor que a gente sente quando sente a lembrança desse grão-mestre.
O bicho-sentimento, que se comporta
como um comichão, que caminha com qualquer aluno, naqueles primeiros dias de
convívio era mistura de incerteza, lacuna e torpor, marcados desde quando
éramos meros estagiários.
Com o bicho em doma, ao longo do
convívio, afrouxaram-se as cordas do relógio, colocava-se tudo em vagareza e
aliviava-se a dor pleural. Assim íamos construindo nossas notas, nossos passos.
O professor quando falava, sua saliva lustrava nossos sapatos e aí começávamos
a caminhar mais a vontade, reluzindo saberes, mesmo que o piso fosse
escorregadio.
Cirurgião forte, como este de quem
falamos, se enternece mesmo é com a amplidão de seus estilos e de seus
ensinamentos. Aí lentamente íamos ganhando tônus e nos sentindo mais sóbrios,
comparado ao torpor inicial. É assim a catarse do aprendizado que todos seus
residentes viveram ao longo daquele convívio.
... e se
alguém encontrá-lo, agora, estará ao lado de sua sombra – a família –, aquela
que o conduziu por toda a vida. Ele, mesmo-mesmo, estará pastoreando seus meninos,
sereno, com o olhar distante, desejoso de, na madrugada, deixar-se brincar com
os vaga-lumes e tornar a escuridão leito vago para o aprendizado que se iniciou
à luz de lamparina ao ler aquela placa na entrada do serviço.
Muito
obrigado.