Se um dia me perguntarem
o que serei.
Digo: médico de palavras
simples.
Dessas que usam no
alicerce da vida...
Priscila Franco, poeta.
A gente vive mesmo é de calçar sandálias, vagar
mundos e contar fatos. De vez em quando sobra um tempinho para trabalhar e
dar de comer pros peixinhos. Contar fatos me parece combinar com chocolate
quente, então deixemos a fumaça desenhar arabescos no ar e penetrar pelas narinas.
Aconteceu por volta de 2008, num congresso Pan-americano, em Campinas. Eu tive uma participação longe de ser
modesta, mas o meu interesse maior era conhecer o Keneth Mattox, considerado o bardo da cirurgia mundial, e apertar a mão daquele caubói texano. Ele já escreveu vários livros; comandou o resgate das vítimas do Katrina; de quebra também escreveu um capítulo denso num livro de cirurgia que escrevi em 2007 (EDUFPA) - e ainda fez a
introdução.
Eu precisava agradecer...
Eu precisava agradecer...
Na mesma laçada Mattox havia lançado “Top Knife –
a arte e a estratégia da cirurgia do trauma.” Claro que comprei e ganhei um
autógrafo, além de uma foto ao lado do baluarte. Alto, largo e claro, trajava um paletó de marca, envergava uma gravata com a bandeira texana e um chapelão ao melhor estilo caubói; tinha um ar juvenil e vivaz de quem só envelhece pelas rugas, pois pela alma haviam esquecido de avisar-lhe que os anos se passaram. Tivemos um bom aproach, apesar do meu inglês açaí-com-tapioca, e o dele, de texano com voz de trovão em estilo teatral.
Já de volta a Belém, na sala de aula e em
visita com os alunos às enfermarias - e o top knife mattoxiano sobraçado -, uma jovem me abordou e achou o título assaz interessante, pois não é comum livros acadêmicos
com alcunhas roliudianas. Disse-lhe que havia conversado com o autor e que era uma
homenagem ao filme Top Gun – ases indomáveis, cuja estratégia de guerra do filme poderia ser comparada à da sala
cirúrgica em situações “in extremis”.
A aluna se chamava Priscila. Ela anotou aquilo tudo e me mandou no dia
seguinte um texto curto chamado “Top Knife – jornada na cirurgia”. Era uma alusão ao livro de Mattox. O texto é
simplesmente fantástico e representa o olhar de um estudante frente às ciladas cirúrgicas. Ele encontra-se afixado na porta do Serviço de Cirurgia e será abertura do manual de cirurgia da UFPA, endereçado aos alunos.
Após se graduar,
Priscila Franco pegou o beco e foi para São Paulo fazer residência médica. Seu último texto postado foi de julho de 2011 e nunca mais li mais nada. Fui para o noticiário e achei o motivo: depois de um
plantão pesado, voltando para casa por uma dessas estradas paulistas, um caminhão
invadiu sua pista e ceifou sua vida. Alguns acharam que ela estava cansada do plantão e
havia perdido o reflexo. O que ficou da médica, escritora e poeta foram
alguns versos, lembranças do internato e também essa pequena peça que dorme de luz acesa nas ideias de Keneth Mattox, e que será imortalizada em breve.
O
que temos agora é uma amostra grátis de tantos poemas que ela prescreveu.
São textos incrustados na contextualização médica, com uma estética provocadora que invoca um transplante
de ideias e de resistência à verborragia indolente, quase sangrante, que assola a linguagem médica - que ora dorme apedrejando o inconsciente, ora passeia pela poesia moderna jogando flores ao léu.
Se um dia me perguntarem o que serei
Digo: médico de palavras simples
Dessas que usam no alicerce da vida
Mas que andam ao descaso por aí...
A palavra paixão.
Virou esquizofrênica!
Anda tendo alucinações.
Acha que é amor.
Virou esquizofrênica!
Anda tendo alucinações.
Acha que é amor.
E o amor? Hipocondríaco!
Deu-se mil doenças...
E parece que morre amanhã...
Deu-se mil doenças...
E parece que morre amanhã...
A coragem, em regular estado geral,
diz que contraiu o vírus da indolência
e desmotivação.
diz que contraiu o vírus da indolência
e desmotivação.
A amizade nem se fala...
Uma febre de origem desconhecida.
Parece a palavra colega quando estava doente.
Será que é a mesma coisa?
Uma febre de origem desconhecida.
Parece a palavra colega quando estava doente.
Será que é a mesma coisa?
O respeito é o mais perdido.
Não sabe nem que médico procurar.
Pode ser o mesmo da educação,
que anda se queixando,há tempos,
de dores na sua espinha dorsal...
Não sabe nem que médico procurar.
Pode ser o mesmo da educação,
que anda se queixando,há tempos,
de dores na sua espinha dorsal...
A fidelidade, por acidente de trabalho,
adquiriu doença venérea.
Queixa-se de esquentamento...
adquiriu doença venérea.
Queixa-se de esquentamento...
A gratidão.
Diagnóstico a esclarecer.
Parece doença rara.
Diagnóstico a esclarecer.
Parece doença rara.
A honestidade, coitada.
Para essa, nem concorrência tem...
Talvez a mais moribunda de todas...
Para essa, nem concorrência tem...
Talvez a mais moribunda de todas...
E oxalá que ninguém morra dessas
verdades...
Se um dia me perguntarem o que serei
Digo médico de palavras simples
Médico de palavras simples
Palavras simples
Simples!
Um comentário:
Amei, simplesmente amei! Tem horas que apenas a arte da poesia pode expressar os sentimentos.
Muito obrigada por compartilhar!
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