sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Encontros e desencontros, parte II

            Ontem, ao desfolhar Corisco, revi meu passado às margens do Envira, das terras de Galvêz Imperador. Foi como lambesse a pele dessa infância cheia de perebas, mordida de pium e rasgos da rua - e ainda sentir gosto adocicado.

Remeti-me ao passado no interior do Acre, acreditem, pois é bem difícil frear esse oração da infância, que descarrega todas as sinapses da candura ao refazimento dos dizeres de Corisco. Nos refazimentos, há sempre uma das minhas pernas procurando a do Saci; a Matinta Pereira, que sempre me fez medo em noites de alagamento, ou mesmo o temido Mapinguari, que se escondia entre uma touceira e outra quando íamos apanhar goiaba no sítio do seu Guimarães, do outro lado da pista do aeroporto. 

Naquele interior tinha mundo: o terçol era tratado apenas aquecendo a aliança da d. Marina na barra da saia: “difícil explicar essas coisas pros não iniciados”, diria o poeta. Talvez seja essa minha ojeriza ao “ralo-ruim”.

Então... Por desadestramento literário, surrupiei este do Corisco, cuja infância beirava a minha, a de Tom Sawyer, Pedrinho do Sitio, Huckleberry Flinn ou mesmo Oliver Twist e David Copperfield. Todos eles dormem no interior de semelhanças... ou no sonambulismo de Manoel de Barros: “Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.”

No meu quintal de vestígios, o Mississipi de Sawyer também se junta ao Envira do Orleilson. O Tâmisa de Oliver se converte no Juruá e se estica até o Purus do meu portão, que ficava confronte a uma praça, cujo coreto servia de palco para encenarmos nossos sonhos. Naquela Macondo, tudo virava a mesma água, o mesmo banho de açude, rio ou igarapé de quando a gente pulava da ponte arriscando golpe na testa ou mordida de Surucucu-Bico-de-Jaca.

Como então compreender que pelos raios dessa infância nos encontrávamos com todos esse filhos do imaginário de Dickens, Monteiro Lobato e Mark Twain. E os castigos de minha mãe, combinado com o nosso pai, mas que seu Martins, vizinho que não tinha menino, sempre ficava aguardando A volta à rua com picolés de graviola. 

Eu, particularmente, me dava muito bem com quase todos daquela infância, principalmente os da boleiragem: o Chico Boca Preta (que já soube que anda por Belém), os gêmeos Cosme e Damião, assim como o Zé Antonio - que hoje faz parte do bando. Alguns tinham nomes esquisitos, como o Orleilson e o Kieffer, hoje o prefeito da cidade, mas quem me intrigava mesmo era o Mim. Sei lá donde veio esse apelido, assim como o Mauro Macaxeira, filho de um extrativista de borracha, que não se misturava com a nossa raça vira-lata.

Dali fiz o tesouro da minha infância, junto dos correligionário Toninho formiga, Paulo Ieiê e Marcelo Louro Cor de Bosta. Era dali que partíamos em expedições com o Escurinho, Julio Verne, Elesbão, Victor Hugo, Luís Camiranga e Miguel de Cervantes no rumo dos igarapés, furos, praias, praças e o rio Envira da memória.

Bom também era esperar o Alayde, na beira do rio. O Alayde era um desses navios que vinham de Manaus, varando o Solimões, até bater no porto, afugentando as pescarias de Mandim e Piranha. Vinha em março, quando as águas subiam. Ali tinha açúcar, sal e melaço por um bom tempo; funcionava como um supermercado itinerante, e se chamava regatão. Segundo o padre Renato, ainda antes de casar: herança do ciclo da borracha.  

Por fim, Corisco estrela-se em poesia: “Quando a lua, que iluminava os esconderijos, dava aviso que estava chegando, era hora de engavetar os sonhos até que o dia seguinte nos permitisse novo passeio pela imaginação."

Obrigado, Corisco. Guardamos de ti a poesia que o mundo insiste em esconder. Se pudesse te pedir alguma coisa, pediria para que tempo fosse lento toda vez que escrevesses; para que o tempo se juntasse em torno de tua poesia e rezasses pela planura da vida e daquele passado.

Labareda.

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