A
morte tece seu fio de vida feito do avesso
Dori Caymmi e Edu Lobo, na
canção: "Desenredo"
Caminhar por ruas estreitas e largas ou adentrar a shoppings parecem ações comuns dos reles viajantes em passeio. É ler de tudo. Natural que nos deparemos com imagens e propagandas para o chamamento a gastos: livrarias e livreiros é-me rotina.
Assim adentrei em determinada livraria de Braga, Portugal, quando me deparei com o guia "Cultiva a saúde com livros". Na capa a linda jovem amontoa livros nos braços e põe um estetoscópio no pescoço. Fiquei a me perguntar como a imagem do estetoscópio aliado à leitura poderia salvar vidas. O editorial era sobre a guerra na Ucrânia. O guia relata que determinada
jornalista recolhia depoimentos
aqui e acolá, enxergava rostos aflitos e agitados, alguns chorosos e
amargurados, tensos, inquietos, até que mais adiante observou uma jovem
ucraniana com a cara num livro. Ao fundo percebia-se pó impregnado nos móveis
de uma sala que aparentava ter perdido parte das paredes; ao redor muita
agitação, relatava o autor do editorial.
Em meio aos
escombros deste fluxo contínuo e incontrolável de imagens televisivas e
informação frenética sobre a tal guerra, numa amálgama de explosões e
refugiados e feridos e mortos e soldados e testemunhos e discursos e opiniões e
teorias e ruínas e mais refugiados e sirenes e bânqueres e choros e tiros e
mais ruínas e tanques e mísseis e estratégias e apoios humanitários e refugiados.
Tudo muito nervoso e angustiante, num desespero e desnorteamento sem fim.
Assistir à reportagem de uma ucraniana calmamente sentada com um livro à sua frente,
totalmente envolvida, abrigada numa cave enquanto decorria um ataque de mísseis,
me deixou tonteado. À sua volta crianças choravam, mães carpiam e bramiam,
outras rezavam com nervos à flor da pele. Os poucos homens que por lá estavam
não paravam quietos, angustiados, sem saber o que fazer. O que se passava com
aquela moça? As palavras dos demais saiam atropeladas, sem conseguirem
conter-lhes o desvario e a ansiedade. Ela, plácida e serena, lendo um livro no
alfabeto cirílico, alheia a toda aquela barafunda.
A
jornalista se achega e pergunta-lhe o que está fazendo. Ela responde que está lendo,
com certo ar de lógica. A jornalista, incrédula, imbuída daquele frenesi
alucinado que de repente parece ter tomado conta do mundo, pergunta-lhe como
consegue. A ucraniana, tranquila, com voz calma, explica-lhe que, quando ler,
tudo o que a rodeia desaparece, que mergulha na história do livro e passa para outro
mundo, esse onde decorre a narrativa, alheando-a dos medos e temores da guerra,
dos horrores do presente. E diz isto com um quase sorriso, numa serenidade e
bondade que contrastam vivamente com tudo a que a circunda, mesmo com essa
excitação profissional de jornalista em situação de notícia. Depois cala-se e
mergulha de novo na leitura.
A
jornalista continuou seu delirante inquérito, mas guardei esta leitura de pura
lucidez em cenário de guerra, e agora já tinha como aliar ao estetoscópio: "a literatura é que nos pode salvar do manicômio".
Decerto os caminhos conhecidos da guerra não dão conta das agonias de seus filhos, pois
há um futuro incerto acontecendo lá fora. Mas a vida pede um corredor
humanitário e segue habitando-nos bem além das escolhas que fazemos.
Por mim, continuaríamos
a ter asas pra brincar de passarinho em nossos sonhos e dar a mão a Deus, se
ele quisesse passear numa praça em Kiev. Mais tarde, em qualquer boteco, poríamos o
coração à mesa e celebraríamos a comunhão dos homens.
Texto
adaptado do escritor angolano Adolfo Luxúria Canibal e do poeta Corisco.