quinta-feira, 20 de abril de 2023

Minha aldeia, minha tribo...

    "Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens."    

Manoel de Barros, poeta.

    

        Morei quase cinco anos no Rio de Janeiro, logo após a graduação. Quando cheguei por lá, beirava os 24 e tinha sonhos na profissão - como qualquer um. Mas coexistiam medos: Rio é bem maior que Belém, assim como Belém é bem maior que os interiores do Acre e de Rondônia, de onde brotei. E isso é o suficiente para encarar os enfrentamentos.

        Vencida essa etapa, acenei, ao final do período de residência médica, que gostaria de voltar para minha tribo. Confesso que o chefe da aldeia carioca, um desses tupinambás aguerridos, já havia me convidado para ficar, mas suas palavras não tinham o prego que sustentasse minha alma à cruz do Corcovado. Veio também convite da universidade onde fiz mestrado. Claro que fiquei honrado, mas preferi regressar.

Já em Belém, volta e meia recebia ligação para voltar. Ainda não tinha filhos e vivia num apartamento mirrado, no Souza, bairro afastado do centro. Andava de ônibus e meu apurado vinha do trabalho como oficial temporário do exército, mais alguns plantões de CTI. Passado oito meses, recebi um ultimato, que coincidia com a Eco'92, no próprio Rio. O telefonema sacudiu minha base, mas resisti. Certamente todos poderiam me aclamar como aru. Fiquei amuado e, confesso, passei uns tempos trabalhando com um lado da cabeça, ao estilo dark side of the moon. Parecia que havia uma comichão nas minhas têmporas, a ponto de perder a concentração no trabalho.

       Logo em seguida a esposa resolveu ir ao Rio, para ficar uns tempos com a família. Digamos, matar a saudade. Pronto, era o fim! Eu disse para mim mesmo, e até hoje ela não sabe, mas achava que não voltaria mais; que ali estaria o fim de meu matrimônio. Então teria que arrumar as malas e voltar, se quisesse salvar o casamento. Era o telefonema  abençoado voltando a tilintar na minha cabeça.

        Naquele meu mundo, ninguém entenderia minha paixão pela terra, pelos amigos do futebol aos sábados, assim como as idas à Curuzu; pelas chuvas da tarde e o mormaço no toutiço; pela convivência com os irmãos e pais; a saudade do açaí e do taperebá, além dos shows do Nilson Chaves; sem falar do cheiro de maniçoba que ronda a semana do Círio de Nazaré. Como viver sem isso?

      Eu também via como coisa ardente, a possibilidade maior de crescer profissionalmente na minha cidade, após ser bem acolhido na chegada. Lá, talvez não tivesse tanta chances, em que pese ter deixado amigos que até hoje me faz reacender aquele convite de 30 anos atrás. 

      Com o passar dos anos, cada vez mais me vi fincado profundamente ao solo da indomável floresta. Talvez por ter convivido com tantos Ashaninkas e Kaxinawás durante minha infância no Acre. Provável que isso tenha me deixado meio aparentado com índios, e com enraizamento nada superficial. 

Foto: David Normando
        Isso me fez relembrar os tempos de escola, no Acre, que no 19 de abril tínhamos que desfilar pelas ruas com rostos pintados de urucum e penas de pássaros ao redor do calção ou cabeça, e umbigo de fora. Era forma de reverenciar os povos originários. Guardo em minha memória a fotografia do Paulo, um dos irmãos, vestido de tuchaua. Ele encabeçava o desfile, perfilado num jeep Willis, sem a capota. Meu pai, com sua Olimpus trip 35, eternizou aquele momento. Lá no interior daquele mundo era feriado e, para mim, ainda até hoje.

       O desfile aberto não era só encantamento de nossa infância. Hoje leio como forma de repudiar Borba Gato e os demais bandeirantes, assim como essa nova era filogenética de exploradores da terra. Escrevo assim para que jamais suma de nossa de memória o encantamento por essa floresta e por quem cuida dela. 

        Hoje são 19 de abril. Moro em Belém e sigo casado, só que agora carrego dois curumins em meu jamaxin. Cá fundamos a tribo Ya-Normando, uma frajola homenagem ao nosso pai, nascido em Roraima, berço dos Yanomâmis.

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