Dá vontade de beber toda aquela água do Guaíba e
vertê-la no atlântico, por meio dos ductos urinários. Espera-se que em breve,
novos tons modifiquem a paisagem sulista para que passemos a nos locomover,
dançar, girar e ir a grenais; e desanexar de nossas retinas a cor barrenta dos tetos das casas para anunciar o fim da catástrofe ambiental.
Mas o que está acontecendo, afinal? Seria o homem perdendo o senso, o tino contra o destino, e depois cair de boca no mundo implorando para que a vida lhes seja leve, sem Rivotril?
Se de dia os deuses dormem e não se prestam a
atender pedidos vãos, eles castigam os humanos por suas escolhas, em grandes partes infelizes. E é isso que garante a perenidade dos deuses que, a
pedido, voltam às madrugadas para bolinar com meu sono, enfeitando-os com as
flores do amanhã que nunca chegarão.
Perseguido pela insônia, levanto-me e ponho-me a andar. A moldura da janela do apartamento é a mesma que enquadra o mundo que
meus olhos percorrem na madrugada insone. Olho para uma outra moldura, a Madona de Belini, e não consigo ver sorriso, tampouco euforia. Não ouço o barulho da chuva das ruas de Porto Alegre, alhures, mas se afoga em mim um mundo silencioso e soturno, salpicando água salgada, que escorre pelo canto do olho.
Ao redor, nossos prédios guardam pessoas que dormem, e muito me agradaria se, de uma janela qualquer surgisse o Esteves - aquele que Fernando Pessoa diz ser sem metafísica - para me acenar .
Será que Esteves me explicaria, por exemplo, como os Neardenthais
sumiram da terra? Yuval Harari pediria voz: viveram há cerca de 400 mil anos e extinguiram-se há 28 mil anos. As razões
para a extinção ainda são debatidas. As teorias mais aceitas apontam para
fatores demográficos: pequeno tamanho populacional, endocruzamentos, mudanças climáticas, doenças e combinação.
Mudanças climáticas? De novo o tema? Será que tais mudanças climáticas realmente abduziram nossos primos Neardenthais - em minha docta ignorantia? - Por que os Sapiens resistiram? O Sapiens surgiu há cerca de 300 mil anos, portanto, Neardenthais e Sapiens se cruzaram em algum lugar dos confins de Copacabana, naquele sábado que deveria para ser enlutado.
Quando minha vista não deu mais conta da paisagem, entra em cena a imaginação, pra enfeitar as horas do sono que não chegam. Olho para a noite estrelada de Van Gogh e um mundo novo e inebriante se descortina à minha frente em apresentações deslumbrantes, com astros vindos dos confins da eternidade em exibição celestial, exuberante, de sustar o fôlego.
Quando o domingo lançou os primeiros raios, as copas das mangueiras exibiram seus frutos em amarelices variadas. Ao nível das ruas o sossego brincava de esconde-esconde numa agitação invisível aos que não tinham olhos de ver. Esse conjunto de euforia me faz sentir paz. Melhor não ligar a TV. É hora de abandonar tudo e tentar dormir.
Ao deitar, uma motocicleta impiedosa passa. De sua
descarga saem imprecações monstruosas que desfazem toda a magia que envolvia
aquele momento da mais gloriosa comunhão entre mim e a natureza. Seria a tal
motocicleta responsável por tantos desastres naturais? Tão rapidamente foi a
cena, que não esbocei sequer reação à agressão e nem desejei que o infeliz fosse
contaminado com a peste negra ou pelo SARS-Cov2, a carcomer seus
pulmões a cada estada nos círculos do inferno descrito por Dante.
Não desças os
degraus do sonho
Para não
despertar os monstros.
Os deuses, por trás das suas máscaras, Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não
subas, fica.
O mistério está
é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo…
Roger Normando é cirurgião torácico titulado pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica e professor da Universidade Federal do Pará.