sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Praia de Copacabana, fundos.


 Viajar pelo Brasil requer paciência... mas muuuuuuuuita paciência. Os aeroportos cada vez mais desplugados do cidadão, que sente na epiderme da alma as chicotadas da escravidão moderna. Sobre estradas, então, nem se fala...

Na última, o avião me apanhou em Belém e me despejou em Brasília. Sim, um despejo que me fez lembrar os jogos da quarta divisão do campeonato brasileiro, quando o maqueiro da cidade sede, com o resultado adverso, cata o jogador visitante contundido, rola-o na maca e, à beira do campo, despeja o coitado, tal como se fosse jogar lixo num terreno baldio.

O jovem Caio, por mais que tenha tentado defender a sua empresa aérea, tenta criar um gabinete de crise para solucionar um voo suspenso desde quando ainda avistávamos, da janela, o lago Paranoá. Quando chegamos ao guichê da empresa, o caos começava a se instalar. Um verdadeiro parangolé. Mais e mais pessoas se juntavam na tentativa de obter o mesmo destino: Rio de Janeiro cuja pista de pouso estava suspenso por motivos pluviométricos, segundo os assistentes da empresa (ou seria pela chuva de gols que o Botafogo deixou no endiabrado Penarol?) Isso já era quase oito da noite depois de um voo de mais de duas horas. Com exercícios de paciência, conseguiram nos colocar num voo para campinas, pela empresa vizinha, para o dia seguinte, e depois aterrissar no Santos Dumont. Seriam 18 horas de atraso. Dava para chegar em Dubai pela Emirates, ou Gurupá, ilha do Marajó, de barco, com direito a 12 paradas, a favor da maré.

Isso porque haviam colocado à disposição um voo de quase 24 horas de espera em Brasília. Talvez fosse a chance de conhecer o belo Paranoá, rés ao chão. 

Quando tudo esteve mais calmo fomos encaminhados a um hotel de alto nível, com voucher da empresa. Pavulagem: o hotel não tinha recebido nenhum comunicado. Mais uma decepção. Mais um gol contra. Naquela hora ou voltaríamos para o aeroporto, ou encararíamos aquele pernoite por mil reais. A romaria de sem-tetos a cada momento aumentava no balcão do hotel. Eram os mesmos rostos bufantes de antes. Cansado, tirei o escorpião do bolso. Apesar de caro, era melhor lugar para rezar, esperar o amanhecer e depois partir.                              Na memória ficou a história do motorista da van. Ele nos aferia que aquilo acontecia todos os dias em Brasília. Ou seja, a empresa sempre estava ali pronta para enganar os bestas e manter esticada a corda de caranguejo, em que um está preso ao outro pelo cordão da convivência conivente, independente da empresa.

Então embarcamos às nove e chegamos a Vira-copos com a sensação de vira-lata de invasão, sem direito a um cantinho para descansar os ossos -já com algum grau de osteoporose - e sem sequer um cafezinho para melhorar humor e o teor sanguíneo de serotonina.

Como todo caos é pedagógico, vivemos uma experiência e um bom bate-papo com dois cariocas dos tempos do Brizola, que estavam conosco desde a fila do guichê. Libério e Robertinho Careca, engenheiro e geólogo, respectivamente. Profundos conhecedores dos cafundós da Amazônia, eles haviam embarcados em Laranjal do Jari, divisa do Amapá com Pará. Mantinham acesos o sotaque e humor carioca, além de efusivas histórias.

Entre horas e horas de conversas, do guichê ao pouso  em Santos Dumont, Rio de Janeiro, várias relatos foram perfilados, mas o de Copacabana, foi a mais sensacional. É a história de um prédio que fica na beira da praia, mas o apartamento adquirido fica de costas para o mar. Ele fez o investimento para agradar um amigo português, também geólogo, que havia conhecido em Maputo, capital de Moçambique, após ter saído de um coma de cinco dias por malária. Roberto lembrou-me o personagem Melquíades, de "Cem anos de Solidão", de Garcia Marques, em que sobreviveu a várias moléstias. Também lembra o esquisito Rasputin.

Mas essa história vai ficar para outro escrito. Não tenho tutano para escrever mais que 3 mil caracteres e transformar esse texto numa passagem aérea para concorrer ao prêmio Jabuti. Nessa situação eu até aguentaria dar duas voltas ao globo, mesmo nas asas da Gol.

domingo, 6 de outubro de 2024

Made in Acre



       Há os lugares que chamam Macondo, há os que nomeiam Pasárgada... Há os que se apaixonam por Benquerença. Vou ficar com Feijó, esse pedaço de minha viagem à infância no Acre. Que se danem Gabriel Garcia Marques, Manuel Bandeira e Corisco, respectivamente.
       Vou nesse voo pelas asas do Toninho, com quem hibridizo alguns alelos mendelianos. Toninho passou 50 anos longe do Acre, terra onde ele foi prosperado. Nesse meio século eu estive ao lado dele e vi que de lá ele nunca se desligou. Todo o azougue de vida que ele criou com o passado mora ali naquele cafundó do mundo, pedaço rico da Amazônia de Chico Mendes e minha também.  
         Então numa leitura perdida, eu me achara voltando ao Acre 50 anos depois, na vez do Toninho, que nosso pai chamava de Tilico.
          Lembro ainda de nossa partida. Só cabia viagem pelo ar. Era num monomotor Cessna. Agora já há um novo caminho, mas por estrada talhada pelo abandono. No céu há sinais de queimadas. É a Amazônia em chamas, visto do chão e da janela do avião. Não era esse o teto de outrora. São laivos de uma destruição que não poderíamos ignorar.
         Pela estrada, eu havia esquecido muitas outras coisas de uma vida que ia se tornando aterradoramente longa. Para mim, certas desmemórias funcionam como uma estratégia de sobrevivência: era preciso soltar lastro para se manter flutuando na languidez das lembranças de nossa infância sem encalhar nos rancores, nas contagens de ilusões truncadas, até partir dali pra cidade grande, na década de setenta.                                         Até um sujeito como Toninho, em que tomo emprestado suas retinas, obstinado recordador, quase um memorioso capaz de se lembrar de tudo, devia permitir à sua consciência certas varreduras, limpezas anímicas e psicologicamente higiênicas para tentar impedir que a carga das lembranças o enterrasse o lodo das aversões e frustrações, como a de seu irmão mais novo, quase morre num atropelamento irresponsável.                           Sobretudo, para não pensar que teria sido possível outra vida, Toninho largou de lado essa amargura e chegou a Feijó 50 anos depois. Levou-me em seu bolso. Mas aquela confluência específica, às margens do rio Envira, já quase na beirada com o Peru, é quase uma revelação mística. Os seringais, os Kaxinawás. É óbvio que se lembrava - tinha de se lembrar-, ele até consegue reproduzir em cores e com precisão de detalhes, ocasionalmente ornada com as rotas, brincadeiras de futebol, bola de gude, pira-esconde e trinta-e-um-alerta na hora que a iluminação dos postes findava.
Hoje retomamos a esse passado apaziguado pelo sentimento de infância; pelo reencontro com esse passado de fantasias, adormecido dentro do travesseiro antes de dormir.
        Se em Macondo existe um rio de águas diáfanas, se em Pasárgada sou amigo do rei, e se em Benquerença tem o Rex Bar, em Feijó tem o Orleylson e o Escurinho, outro elo com essa querência de repassar a limpo o que ficou tatuado nessas relembranças trincadas no meu cérebro, mas uniformes no do Toninho.
      Esse pedaço de vagomundo não se evapora no simples ribombar do passado autóctone. Ele fica vivo como afresco que se expressa na parede viva que acarpeta nossa pele. Não há queimada que apague. 
       É que: se o tempo nos desse a chance de,  na barra da saia de nossa mãe, sair para pescar de linha e anzol, essa gota viva de lembranças que escorrem pelo rosto, que nos isola de um tempo cujas densidade e matizes permanecem acesas, nós reconstruiríamos apenas com a luz de poronga toda essa vida novamente.