Há os lugares que chamam Macondo, há os que nomeiam Pasárgada... Há os que se apaixonam por Benquerença. Vou ficar com Feijó, esse pedaço de minha viagem à infância no Acre. Que se danem Gabriel Garcia Marques, Manuel Bandeira e Corisco, respectivamente.
Vou nesse voo pelas asas do Toninho, com quem hibridizo alguns alelos mendelianos. Toninho passou 50 anos longe do Acre, terra onde ele foi prosperado. Nesse meio século eu estive ao lado dele e vi que de lá ele nunca se desligou. Todo o azougue de vida que ele criou com o passado mora ali naquele cafundó do mundo, pedaço rico da Amazônia de Chico Mendes e minha também.
Então numa leitura perdida, eu me achara voltando ao Acre 50 anos depois, na vez do Toninho, que nosso pai chamava de Tilico.
Lembro ainda de nossa partida. Só cabia viagem pelo ar. Era num monomotor Cessna. Agora já há um novo caminho, mas por estrada talhada pelo abandono. No céu há sinais de queimadas. É a Amazônia em chamas, visto do chão e da janela do avião. Não era esse o teto de outrora. São laivos de uma destruição que não poderíamos ignorar.
Pela estrada, eu havia esquecido muitas outras coisas de uma vida que ia se tornando aterradoramente longa. Para mim, certas desmemórias funcionam como uma estratégia de sobrevivência: era preciso soltar lastro para se manter flutuando na languidez das lembranças de nossa infância sem encalhar nos rancores, nas contagens de ilusões truncadas, até partir dali pra cidade grande, na década de setenta. Até um sujeito como Toninho, em que tomo emprestado suas retinas, obstinado recordador, quase um memorioso capaz de se lembrar de tudo, devia permitir à sua consciência certas varreduras, limpezas anímicas e psicologicamente higiênicas para tentar impedir que a carga das lembranças o enterrasse o lodo das aversões e frustrações, como a de seu irmão mais novo, quase morre num atropelamento irresponsável. Sobretudo, para não pensar que teria sido possível outra vida, Toninho largou de lado essa amargura e chegou a Feijó 50 anos depois. Levou-me em seu bolso. Mas aquela confluência específica, às margens do rio Envira, já quase na beirada com o Peru, é quase uma revelação mística. Os seringais, os Kaxinawás. É óbvio que se lembrava - tinha de se lembrar-, ele até consegue reproduzir em cores e com precisão de detalhes, ocasionalmente ornada com as rotas, brincadeiras de futebol, bola de gude, pira-esconde e trinta-e-um-alerta na hora que a iluminação dos postes findava.
Hoje retomamos a esse passado apaziguado pelo sentimento de infância; pelo reencontro com esse passado de fantasias, adormecido dentro do travesseiro antes de dormir.
Se em Macondo existe um rio de águas diáfanas, se em Pasárgada sou amigo do rei, e se em Benquerença tem o Rex Bar, em Feijó tem o Orleylson e o Escurinho, outro elo com essa querência de repassar a limpo o que ficou tatuado nessas relembranças trincadas no meu cérebro, mas uniformes no do Toninho.
Esse pedaço de vagomundo não se evapora no simples ribombar do passado autóctone. Ele fica vivo como afresco que se expressa na parede viva que acarpeta nossa pele. Não há queimada que apague.
É que: se o tempo nos desse a chance de, na barra da saia de nossa mãe, sair para pescar de linha e anzol, essa gota viva de lembranças que escorrem pelo rosto, que nos isola de um tempo cujas densidade e matizes permanecem acesas, nós reconstruiríamos apenas com a luz de poronga toda essa vida novamente.
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