terça-feira, 24 de dezembro de 2024

É natal e tantas coisas mais...

        Foi pelo caminho das águas, com os ribeirinhos, que resolvi passar o natal com a família. Embarquei na expedição Tucumanduba, há mais de 30 anos liderada por David, meu irmão dentista. Já fui umas tantas vezes. Só não vou mais por conta de um projeto social.

Fui bastante animado, afinal fazia tempo que não comemorava o natal no seio da floresta. Fui também para rever tio Bena e d. Marivalda, velhos conhecidos e nativos que nos recebem em sua casa simples, do trapiche à cozinha.

Tio Bena, com pouco mais de 80 anos, é a quarta geração da família Góes. Vieram de Portugal no final do século 19 para as ilhas ao redor de Abaetetuba, até fincar a bandeira lusa. Existe, por lá, a lápide de João Góes, o primeiro imigrante. Tio Bena ainda gaba-se que se curou de duas ziquiziras com a ponta do bisturi: tumor de próstata e câncer de parede torácica, mas ficou proibido pelos filhos - não pelos médicos - de trepar em açaizeiro de peconha. Por ele, ainda daria para escalar um gito. Gaba-se mais ainda de ter toda essa virilidade, por conta da alimentação saudável: açaí do fundo do quintal (rico em antocianinas, pigmento flavanoide anti-envelhecimento) e peixe Mapará apanhado no rio defronte (rico em proteínas, pouca gordura saturada e sem carboidratos).

Escorado no casarão de mais de 100 anos, tento me achar no Google Maps. Nada, nada. Não chega sinal por lá. Ali o rio é rua e a mata fechada é um paredão verde que tira coragem de qualquer um de se embrenhar e bater perna. Tio Bena diz que não tem onça, no máximo tatu e macaco prego. Meu receio é cobra, mas ele diz que não. Não se discute com sábios. Vez por outra, se vê boto.

Dia antes dos presentes programamos um passeio de barco para tomar banho na baía do Capim (junção do rio Tocantins com o Amazonas – rio Pará). Estávamos incendiados. Fomos na maré baixa, titiando a floresta até varar no destino. No isopor o indispensável: cevada no gelo para brindar o desfolhar da natureza e o níver do menino Jesus ribeirinho, segundo o poeta Paes Loureiro - que nasceu por aqueles bandas.

No passeio só gente tarimbada. Além do Nailson, filho do tio Bena, havia um outro Davi - sem o “D” ao final. Nailson é contador de causos do tio Caetano, um velho filósofo que nunca leu Kiekeergad, mas adorava relacionar o existencialismo sartriano com a pescaria predatória. Juntando Elmar soma-se a vasta experiência de contar causos. Ou seja, havia muita vontade e uma leva de aventureiros apaixonados pelo natal dalí, onde não há luxo e se proíbe lixo.

Já era boca da noite quando chegamos do passeio. Cansados, atamos as baladeiras. Dorme-se cedo por aqueles barrancos. Éramos dez num espaço exíguo. Pois bem... No meio do sono me acordaram com uma orquestra de trombones que variava entre macaco guariba urrando e roncos retumbantes da cambada. Não tive como distinguir. Teve um que deu pontapé na rede do vizinho, pensando ser um macaco sequestrador.   

Na manhã seguinte já era Natal. A nossa valença foi a junção de expertises do David e do Nailson – o contador de causos. Deu tudo certo. Pegamos o rio e fomos ancorando nas casas com a arquitetura típica dos ribeirinhos. O “Hohoho” do João Paulo, nosso homem de vermelho, alertava os moradores para a chegada. No lugar do trenó, um barquinho popopô sem cobertura puxando os presentes. O sol batia no toutiço. Não havia como disfarçar o calor. Foram quase duas horas rio-acima-rio-abaixo, cruzando com canoas e rabetas, e acenando para sumanos e suprimos.

As crianças presenteadas eram um sorriso só. Foram mais de 50, a começar pelo Danilo e findar na Micaela. Os brinquedos o David comprara. As roupas, doações.

Não pode faltar brinquedo e escovas de dente. Isso é triunfar no espírito natalino liderado por um dentista. O sorriso indisfarçável no rosto de cada criança é lágrima no coração da gente, que escoa e se dilui pela vastidão daquele mundo-água. Aquela visita que já ocorre há mais de 30 anos, mais parece cura para nossas bonanças e um nocaute em nossa tentativa de ser o que jamais fomos.


sábado, 7 de dezembro de 2024

A Amazônia que se mata e desmata


Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir...

Chico Buarque, na canção: “Construção”


Domingo, ao descer até o bicicletário do prédio onde moro, percebi algo estranho no ar. Enquanto preparava a magrela pra dar um rolê, um odor desagradável ampliava. Foram uns 15 minutos. Resolvi olhar para o fundo da garagem. Havia um carro de luxo ligado, todo fechado, ao fundo. Ou seja, eu estava inalando monóxido de carbono. Com a garagem fechada, o ar que saía pela chaminé daquele carro não era varrido pelo vento e a tendência era acúmulo - efeito estufa.

O monóxido de carbono (CO) é gás produzido na queima de material combustível rico em carbono, conforme descreve Peter Atkins, autor de “Princípios de Química: Questionando a Vida Moderna e o Meio Ambiente”. Reitera: “gás asfixiante muito tóxico e, dependendo do tempo de exposição e da quantidade inalada, pode levar à morte.”

Não obstante, parti para um retiro familiar em Alter-do-Chão, meados de novembro. O vilarejo dista 40km de Santarém. Era para aproveitar o feriado. Era. Ao descer do avião havia uma cortina de fumaça que ofuscava a visibilidade do horizonte.  Assim foi todo aquele feriado, cuja fumaça embaçava a outra margem do lago verde. Resultado: ao retornar a Belém, a esposa desencadeia crise asmática. Fomos parar no pronto-socorro com seus brônquios chiando. Foram duas semanas em uso de bombinha, além de dor de cabeça estonteante, que nos assustou. Não é quadro de fácil reversão. O uso de corticóides em altas doses faz-se necessária, conforme relatos de emergencistas.

Erik Jennings, virtuoso neurocirurgião santareno e ativista ecológico, lançou um vídeo nas redes sociais enfatizando a questão e os riscos para a saúde pulmonar aos que visitavam a pérola do Tapajós por aqueles dias. Semana seguinte o ar piorou, e Santarém tornara-se a segunda cidade mais poluída do mundo.  A própria Universidade Federal do Oeste do Pará relata que foram mais de 6.000 atendimentos nos serviços de saúde entre setembro e novembro de 2024, sendo as dificuldade respiratória a mais prevalente, sem falar do fumacê nos olhos.

Mulher Borari
É fato que, com o passar do tempo, a visão da paisagem singular da Amazônia estará cada vez mais estranha, se comparada àquela infância às margens dos rios Envira e Machado, onde me criei. Vi-me estranho à terra de minha mãe e dos boraris.
Ponta do Cururu

Ainda há o espírito da floresta em cada nó de nós, mas há perigos e pontes em direção ao extermínio. Isso nos assusta. Na Amazônia do Jennings - e também da minha mãe partejada no Lago Preto – vê-se que estamos cercados pela mídia, porém indefesos diante do que representamos para a grande aldeia mundial. Há uma sensação estranha por essas bandas. O Muiraquitã, famoso amuleto tapajônico, está mais acocorado que nunca, a espera de saltar para o Arapiuns, sua ultima fronteira.

Não sabia como abordar aquele cidadão, ao fundo da garagem. Ameacei dirigir-me até o carro. Vi-me planta, vi-me árvore, vi-me aquele Bugio-ruivo rosnando impiedosamente sobre a lataria de um trator queimando diesel. Tentei ser pássaro debaixo daquela fumaça que poluía o bicicletário. Abri e fechei meus brônquios várias vezes, sem respirar. Imaginei palavras, gestos... estupidezes. A dois passos da chegada recuei. Ouvi instintivamente a frase que minha cadela Brisa recita com os olhos, quando saio de casa: “vá, mas volte”. Então desapareci com minha magrela.