domingo, 7 de setembro de 2025

Ao saudoso mestre... com louvor!

Geraldo Pereira foi aquele professor-primeiro que abriu a porta da sala de aula para muitos. Ele nos apresentou a tuberosidade tibial, que nos apontava para o fim da adolescência. Uma reviravolta estava sendo proposta a nós. 

A sociedade médica paraense respira fundo antes do ataúde ficar soterrado. Geraldo Pereira despediu-se de olhos fechados e nos deixou a lembrança do giz.

A corda rangia a cada centímetro da descida e a claridade pisa leve no sensorial daqueles que um dia receberam os seus ensinamentos. 

A fenda aberta na terra estala como fogo mordendo lenha. Toda a cidade ouvira aquele som agudo, como se o galho verde da goiabeira ao lado da cerimônia final houvesse fraturado.

O professor envelhecido, com os olhos recolhidos e sem lágrimas, recolhe as nossas para umedecer o próprio passado. 

Pareceu-nos voltar a balbuciar segredos de como se examina o epicôndilo medial. 

Pareceu-nos sorrir o sorriso magnetizado pela alegria de viver. 

Pede que se guarde as anotações mais importantes para o exercício da profissão: retratos desse passado, anotações de rodapé, grifos que se enredam na paisagem do amanhã.

Há uma ameaça de chuva que não ocorre de fora pra dentro, apenas pelos nossos veios lacrimais.

Os livros pesados que usamos tornaram-se mais leves após cada traço de ensinamento. 

A cidade murmura ao longe o fim telúrico do mestre, ao arrastar o último passo antes de caminhar para a partida. 

Ele estudou a natureza íntima da academia, e a delicadeza do que sobra quando a voz enrouquecida se pronuncia: “pega esse pra adoçar a tua vida”.

A mão, que um dia acalentou as páginas de anatomia, agora segura o copo e bebe o cálice da salvação. 

E o copo de alumínio combina coma cor do bule para o último gole do cafezinho, agora amargo. 

A minha cena descrita pede discrição. Estou alhures, mas com olhares diluviando. 

A horizontal do professor se deslocada mais um pouco para baixo e a terra recolhe o pequeno corpo deformado pela conversão cirúrgica - certas idades não permitem trancos e incisões que ultrapassem o tamanho daquele homem.

Não vim aqui para explicar nada, mas para iluminar o pano de fundo que deixou vazio nossas salas de aulas; meu caderno de anatomia branquejou.

Ao longo da estada, Geraldo, meio-xará, tornou-se um atlas da aventura humana. 

Foi acolhido por seus alunos até a última arfada e por sua família afável, que guarda saber cifrado na melodia da generosidade.

Vieram muitos títulos, mas o que ficou foi a densa marca daquele professor que nos ensinou a sonhar na hora de receber o grau para subir os degraus daquela escadaria da Paz.

Obrigado, professor Geraldo Pereira.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Esta nova cirurgia do câncer de pulmão... Que venha!

                                                     Immediately after [1967], a number of other crucial discoveries

that would set the stage for the advent of cancer immunotherapy

were made in rapid-fire succession

William K Decker e cols, 2017.


Cada vez mais operamos casos pós-imunoterapia. É o novo normal do câncer pulmonar avançado. Já com vários-alguns casos de lobectomias e uma única segmentectomia anatômica (reserva funcional limitada), juntadas aos relatos de vários cirurgiões brasileiros, penso ser hora de descansar o bisturi por uma noite, armar a caneta de ideias e pedir uma folha em branco para expor essa nova leitura da cirurgia torácica, alcunhada de cirurgia de resgate (em inglês: salvage ou rescue com teores diferentes)

A começar pelo Atlas de cirurgia pós-imunoterapia em câncer de pulmão, coordenado por Paula Ugalde (Harvard) e Ricardo Terra (USP), recém-lançado. O livro nos catapulta para uma floresta carregada de novos fármacos e ensaios. Não são desafios mirrados, mas também não são obstáculos instransponíveis pela cirurgia. O título poderia ser “Provocações da cirurgia pós-imunoterapia...” 

O resultado dessa nova abordagem cirúrgica anima, principalmente pela exequibilidade da via minimamente invasiva, em que pese a intensa doença inflamatória residual ocasionada pelo encolhimento do tumor. Não se compara com as operações da sequelas da tuberculose, mas deve haver mais alerta à dissecção dos planos anatômicos.

Esse avanço dá maior perspectiva de vida a cada paciente com doença localmente avançada - mais de 70% dos casos. Não só isso, mas também dá respiro à própria medicina em seu aperto de mão com a oncologia, cujo tratamento de outrora nos nauseou por longas décadas. Quem já leu Pavilhão dos Cancerosos, do premiado russo Aleksandr Solzhenitsyn sabe do assunto. Naquela pós-virada de século, o campo emergente da oncologia optou pela abordagem direta ao tumor, mas citotóxica.  

Hoje, quase 120 anos depois, estabelece-se que, mesmo os melhores regimes químicos, raramente curam/controlam a malignidade avançadas. A virada foi graças a estratégias modernas que suplementam e aumentam as respostas imunes antitumorais e oferecem maiores oportunidades para potencializar a remissão duradoura do câncer. Isso passou a ser desanuviamento no peito dos desesperançosos cirurgiões.

Com a ampla aceitação desses novos paradigmas, a capacidade do sistema imunológico de reconhecer e combater o câncer, que foi tópico altamente controverso durante grande parte do século XX, hoje pede revanche para dar fôlego à humanidade.

Mas coisa não caminhou a pari passu com a quimioterapia. Foi uma trovejada desde 2017, com o estudo Pacific. Qualquer cirurgião que tenha montado no seu SpaceX e viajado para outro planeta por alguns anos, ao tentar aterrissar no campo operatório, certamente tomará um susto ao tentar entender essa letraria do novo léxico oncológico.

Esse pilar paradigmático moderno permaneceu duvidoso e controverso por longo período. Por quê? É merecendente de discussão franca, mas nada que uma releitura mais otimista faça-nos entender que a genética, trancafiada nos jardins de Mendel, teve que se converter em genômica e romper as cercas para alcançar o núcleo médico e nos encantar. Foi o pó do pirlimpimpim que os biólogos nos proporcionaram!

A literatura médica todos os dias tem espasmos e parteja novidades com ensaios decisivos que nos levam à aceitação da imunoterapia e outras terapias como regime viável para o tratamento das neoplasias. A última boa-nova é o tratamento peri-operatório (imunoterapia+Qt/cirurgia/imunoterapia) que acaba de ser aprovado pela ANVISA. É o "Durva" novamente - tomo emprestado a intimidade dos oncologista para com o Durvalumabe. 

São marcos de randomizações e os modelos críticos de laboratórios, cuja soma amplia nossa compreensão da biologia do câncer e da imunologia tumoral. Permite-nos avaliação mais rápida da eficácia e segurança de novas abordagens e, em última análise, fornece banco de dados mais rápido para a transição, em que a cirurgia é parte dessa virada, assim como ocorre na tuberculose multirresistente (vale ressaltar que parte do tratamento da TBMR, assim como da falência do tratamento das micobacterioses não tuberculosas valem-se do que se outorgou hoje como tratamento peri-operatório usado no câncer).

Então continuemos enfrentando essa nova cirurgia como "resgate" da velha tísica. Só assim olhamos para esse presente sem desaquecer o passado, onde tudo começou.

Bibliografia consultada

Van Breussegem A., Hendriks J. M., Lauwers P., and Van Schil P. E., “Salvage Surgery After High‐Dose Radiotherapy,” Journal of Thoracic Disease 9, no. S3 (2017): S193–S200

Beatrice Leonardi , Gaetana Messina , Giuseppe Vicario, et al. Rescue Surgery for Advanced Stage Lung Cancer: A Systematic Review. Thorac Cancer. 2025 Aug;16(16):e70151.

William K DeckerRodrigo F da SilvaMayra H Sanabria. Cancer Immunotherapy: Historical Perspective of a Clinical Revolution and Emerging Preclinical Animal Models. Front Immunol. 2017 Aug 2;8:829.