A montanha era a última forma antes do fim de tudo o que existia,
recortada no horizonte, corpo enorme que observava o
mundo.
José Luis Peixoto, em: A Montanha
É
sabido que cancro, no vernáculo da língua portuguesa, pertence a Portugal, enquanto
câncer pertence ao linguajar brasileiro, embora tenham o significado e peso tão
calibrado quanto a própria morte.
É grifado
da mesma forma em inglês, mas pronunciado com a língua meio “endobrada”, escreveria
Guimarães Rosa. Em francês, câncer se diz "le
cancer", como "cancer du poumon", mas com língua re-endobrada,
diria o tradutor francês de Rosa.
Mas tuberculose não. Tem o mesmo grifo. No passado da
poesia foi: tísica. Hoje tuberculose. A mesma que levou para o subsolo tantos
poetas e alvejou o pulmão de Simon Bolívar, no relato libertário de Gabriel
Garcia Márquez.
O fato é que tuberculose e câncer já se
emboletaram não só na medicina, mas na literatura e na lâmina de meu bisturi. Revendo
as três, mas tirando minha incisão, parece até que a vida é oval dentro do
mesmo ovo, do mesmo embrião das doenças. Ou seja: as duas correm em sentidos
opostos para se cruzarem à frente, conforme o modelo atômico de Ernest Rutherford,
mas com uma diferença: sempre uma se esquiva da outra com os ombros, escalavrando
nossas vivências.
Daí vem o José Luiz Peixoto, expoente
da literatura portuguesa, a me relembrar Aleksandr Solzhenitsyn,
autor do Nobel (1971) “Pavilhão dos Cancerosos”, a meio-tom de minha ignorância,
cuja miséria me abandonou ao lê-lo na íntegra. Fez-me sofrer com todos aqueles
horrores de nosso inocente saber sobre a moléstia “cancrosa”.
Prosseguindo: descobri que José Luis Peixoto
é amigo do Gonçalo Paupério, cirurgião torácico do Instituto Português de
Oncologia (IPO-Porto), que é meu amigo, e que me presenteou o novo ramance de Peixoto, num
golpe de sorte. Gonçalo, que por tantas vezes que me recebeu no IPO,
quando morei com meus filhos lá pelo norte de Portugal, para aprender um pouco mais. Portanto, sou amigo do
José Luis Peixoto, mesmo sem ele saber. Não importa, pois o Gonçalo me autorizou. Dane-se Galveias, mas eu
sou do Pará, tão estranho quanto aquele homem que Alice, em “Montanhas” procurou
saber: “provável comedor de pato no tucupi, tacacá e maniçoba”, na 107.
E cada vez mais que
lia o novo romance de Peixoto, via Gonçalo nas visitas, sem esquecer de Filipe e Sara. Mas via também o russo Solzhenitsyn
invadir-me pelas retinas, tentando deixar-me sem fôlego. Só que Peixoto se
vestiu de Portugal, de Pessoa, de Camões, de Sophia de Mello, para falar sobre o cancro, enquanto
o russo se vestia de russo: de Maiakovski a Pushkin, ambos assassinados de
forma vil, sangrando os pulmões e a poesia mundial.
E a
tuberculose? Não gostaria de invadir o terreno do cancro de “A Montanha”, mas
se Peixoto visitasse nossos sanatórios, aqui na porta da Amazônia, é provável
que adquirisse as alucinações de escritores para transformar nossos bacilos em
literatura, assim como fez Thomas Mann em “A montanha Mágica”. Talvez até melhor, aceitasse convite. Só que a Davos
de a “Montanha...” de Mann virou centro de encontro mundial de economia, mesmo restando
o personagem Hans Castorp ainda vivo com a sua pneumostomia soprante, rondando
em torno desses miseráveis que ditam as finanças do mundo. Aqui, Belém, no máximo se tornou centro mundial de discussão sobre o clima (COP30)
Mas o
câncer e a tuberculose são desafios, aos olhos de Gonçalo, aos meus e de todos
os cirurgiões, pneumologistas e oncologistas brasileiros e portugueses.
E se
Peixoto não puder vir ao nosso sanatório, lá no Bairro do Guamá, em Belém, que
então envie Bjorn Alepson, seu personagem predileto, para se deliciar com a
desventura da arte de escrever com o pendor da dor, já que Saramago e José Régio
se foram sem avisar, para transformar a voz de Mann numa espécie de resgate de
uma arte que tem em sua veia a história de duas doenças cavernosas e
desafiantes para os médicos.