domingo, 7 de dezembro de 2025

A tuberculose e o câncer bem além da montanha e da medicina

                                                                                       A montanha era a última forma antes do fim de tudo o que existia,

recortada no horizonte, corpo enorme que observava o mundo.

José Luis Peixoto, em: A Montanha

 

É sabido que cancro, no vernáculo da língua portuguesa, pertence a Portugal, enquanto câncer pertence ao linguajar brasileiro, embora tenham o significado e peso tão calibrado quanto a própria morte.

É grifado da mesma forma em inglês, mas pronunciado com a língua meio “endobrada”, escreveria Guimarães Rosa. Em francês, câncer se diz "le cancer", como "cancer du poumon", mas com língua re-endobrada, diria o tradutor francês de Rosa.

Mas tuberculose não. Tem o mesmo grifo. No passado da poesia foi: tísica. Hoje tuberculose. A mesma que levou para o subsolo tantos poetas e alvejou o pulmão de Simon Bolívar, no relato libertário de Gabriel Garcia Márquez.

O fato é que tuberculose e câncer já se emboletaram não só na medicina, mas na literatura e na lâmina de meu bisturi. Revendo as três, mas tirando minha incisão, parece até que a vida é oval dentro do mesmo ovo, do mesmo embrião das doenças. Ou seja: as duas correm em sentidos opostos para se cruzarem à frente, conforme o modelo atômico de Ernest Rutherford, mas com uma diferença: sempre uma se esquiva da outra com os ombros, escalavrando nossas vivências.

Daí vem o José Luiz Peixoto, expoente da literatura portuguesa, a me relembrar Aleksandr Solzhenitsyn, autor do Nobel (1971) “Pavilhão dos Cancerosos”, a meio-tom de minha ignorância, cuja miséria me abandonou ao lê-lo na íntegra. Fez-me sofrer com todos aqueles horrores de nosso inocente saber sobre a moléstia “cancrosa”.

Prosseguindo: descobri que José Luis Peixoto é amigo do Gonçalo Paupério, cirurgião torácico do Instituto Português de Oncologia (IPO-Porto), que é meu amigo, e que me presenteou o novo ramance de Peixoto, num golpe de sorte. Gonçalo, que por tantas vezes que me recebeu no IPO, quando morei com meus filhos lá pelo norte de Portugal, para aprender um pouco mais. Portanto, sou amigo do José Luis Peixoto, mesmo sem ele saber. Não importa, pois o Gonçalo me autorizou. Dane-se Galveias, mas eu sou do Pará, tão estranho quanto aquele homem que Alice, em “Montanhas” procurou saber: “provável comedor de pato no tucupi, tacacá e maniçoba”, na 107.

E cada vez mais que lia o novo romance de Peixoto, via Gonçalo nas visitas, sem esquecer de Filipe e Sara. Mas via também o russo Solzhenitsyn invadir-me pelas retinas, tentando deixar-me sem fôlego. Só que Peixoto se vestiu de Portugal, de Pessoa, de Camões, de Sophia de Mello, para falar sobre o cancro, enquanto o russo se vestia de russo: de Maiakovski a Pushkin, ambos assassinados de forma vil, sangrando os pulmões e a poesia mundial.

E a tuberculose? Não gostaria de invadir o terreno do cancro de “A Montanha”, mas se Peixoto visitasse nossos sanatórios, aqui na porta da Amazônia, é provável que adquirisse as alucinações de escritores para transformar nossos bacilos em literatura, assim como fez Thomas Mann em “A montanha Mágica”. Talvez até melhor, aceitasse convite. Só que a Davos de a “Montanha...” de Mann virou centro de encontro mundial de economia, mesmo restando o personagem Hans Castorp ainda vivo com a sua pneumostomia soprante, rondando em torno desses miseráveis que ditam as finanças do mundo. Aqui, Belém, no máximo se tornou centro mundial de discussão sobre o clima (COP30) 

Mas o câncer e a tuberculose são desafios, aos olhos de Gonçalo, aos meus e de todos os cirurgiões, pneumologistas e oncologistas brasileiros e portugueses.

E se Peixoto não puder vir ao nosso sanatório, lá no Bairro do Guamá, em Belém, que então envie Bjorn Alepson, seu personagem predileto, para se deliciar com a desventura da arte de escrever com o pendor da dor, já que Saramago e José Régio se foram sem avisar, para transformar a voz de Mann numa espécie de resgate de uma arte que tem em sua veia a história de duas doenças cavernosas e desafiantes para os médicos.