Aristóteles Guilliod de Miranda**
Dizem que o Finnegans Wake, do escritor irlandês James Joyce, é considerado o livro mais difícil que existe para leitura. Impenetrável para muitos, acessível apenas para determinados eleitos – os irmãos Campos, por exemplo, ou os irmãos Pinto, quem sabe? – que o escolheram como provável definitiva e única matéria de vida, razão de seu existir, – a(?)/ (o) “working in progress” dos iluminados com certeza perde e feio para a literatura produzida nas conhecidas bulas que acompanham os medicamentos.
Alguém, principalmente os não pertencentes ao meio médico, já se deu ao trabalho de garimpar em alguma dessas verdadeiras pequenas lojas de horrores e tentou traduzir os hieróglifos ali existentes? A dificuldade começa pelos caracteres microscópicos utilizados para a feitura do texto. Se o coitado do leitor buscava informações sobre um medicamento para a vista, já estaria aí um primeiro teste para a sua visão, além da sanidade mental, é claro!
Depois, o estilo. A acreditar-se que a bula seja um mero folheto informativo direcionado para o leigo (se não, não haveria a célebre observação presente em algumas: “ não desaparecendo os sintomas consulte seu médico”, ou “não tome remédio sem o conhecimento do seu médico. Pode ser perigoso para sua saúde” ) o estilo empregado, se assim podemos considerar como tal, quando muito pode servir de deleite aos beletristas empedernidos, guarda-civis da língua portuguesa, principalmente os pertencentes a briosa confraria dos hipocondríacos literatos ou vice-versa. Que tal algo como “o cloridrato de piridoxina, convertido em fosfato de piridoxal, atua como coenzima de cerca de 60 enzimas, relacionadas, em sua maioria, com o metabolismo de proteínas e aminoácidos”?! Ou “telmisartam demonstrou não ter efeito mutagênico ou efeitos clastogênicos nos estudos ‘in vitro’. Nenhuma evidência de carcinogenicidade foi observada nos estudos conduzidos em ratos e camundongos”, por exemplo?! Não é de se entrar em estado de levitação hipocondríaca ( isto para quem é do ramo)?!
Bom, a questão é a seguinte: se as informações são técnicas, para orientação dos médicos, é pouca coisa, no que se refere às ações farmacológicas; se é para orientação de um público leigo, aí a coisa muda de figura – no máximo desencadeará pânico ou, verdadeiros orgasmos para os viciados. Vale lembrar mestre Millôr quando diz que “médico é um cientista que aplica drogas que mal conhece em pessoas que nem conhece” e que “50% das pessoas morrem de médico”! Será que ele não tem um pouco de razão?
Não sei como funciona a coisa por aí, no que se refere às bulas. Acredito que seja mais ou menos a mesma coisa, partindo-se do princípio que o Terceiro Mundo é o paraíso da indústria farmacêutica, onde são despejados algo em torno de 11 mil apresentações medicamentosas contra cerca de três mil na matriz. Terceiro Mundo?... Ainda não foi rebaixado? Apenas a título de informação, no Japão o médico prescreve a medicação através de uma numeração, que é levada à farmácia, onde é aviada ao paciente a quantidade adequada para o tratamento, evitando o que se tem por aqui que é comprar mais de uma caixa do remédio para completar o tratamento, ocasionando, sempre uma inútil sobra depois.
Acho que os cientistas, os acadêmicos, aqueles que ficam elocubrando a respeito do nada, produtores de pérolas tipo “o ângulo ideal de inclinação do acento agudo para a produção de vogais abertas” ou “o valor das fricativas na população tatibitate”, poderiam debruçar-se sobre estes palimpsestos a fim de dissecá-los para nós, pobres mortais. Seria um verdadeiro serviço de utilidade pública para a sociedade. Principalmente se considerarmos que muitos médicos estão mais para pacientes e leigos do que para profissionais, cientificamente falando.
Um outro dado interessante das bulas é uma espécie de advertência final – e “final”, aí, entra com toda sua carga semântica. Em muitas bulas lê-se o seguinte: “ Atenção – este produto é um novo medicamento e, embora as pesquisas tenham indicado eficácia e segurança quando corretamente indicado, podem ocorrer reações imprevisíveis, ainda não descritas ou conhecidas. Em caso de suspeita de reação adversa, o médico responsável deve ser notificado (grifo nosso)”! Quer dizer, no final sobra sempre para o médico! E a indústria farmacêutica fica de fora? E se o paciente não seguiu as orientações corretamente? E a automedicação, quem responde?
A propósito, o famigerado, ops, famoso, livro do Joyce citado no início foi lançado em volumes, cada um dedicado a um capítulo, tal a dificuldade de verter para o português esta peça literária, com o objetivo de torná-lo legível (digerível?) para os pobres monoglotas abrigados sob o manto da “última flor do Lácio inculta e bela”. Quem se habilita? Aceito empréstimo, depois. De preferência a tradução da tradução. Afinal minha cultura de almanaque Bristol não se permite a muitas concessões. Meus neurônios de estimação, os fabulosos, inigualáveis, inseparáveis e únicos Tico e Teco, penhoradamente agradecem.
* artigo exclusivo para o Flanar.
** Poeta, cronista, médico angiologista, mestre em literatura pela UFPa.
Um comentário:
Que delícia de texto.Parabéns!
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