domingo, 6 de setembro de 2009

TESTE DE MEMÓRIA



Com relativa freqüência aplico em meu trabalho testes específicos para avaliação de funções neurológicas tais como memória, atenção e concentração.
Quando o paciente, geralmente idoso, apresenta um mau desempenho, errando as questões inerentes à orientação temporal e espacial, assim como contas aritméticas simples, o ambiente fica meio tenso no consultório – ninguém gosta de errar, principalmente na frente de parentes.
Nos últimos anos desenvolvi intuitivamente uma pergunta para que os interrogados possam acertar: qual o nome do presidente do Brasil?
Parece brincadeira, mas a quase totalidade dos pacientes, normais, portadores de distúrbio cognitivo leve ou mesmo dementes, acertam com um sorriso estampado no rosto: “Lula”; “Lula, mas eu não votei nele!”; “aquele de barba”; “o sapo barbudo” – estas foram algumas respostas genuínas obtidas.
O clima então melhora, algumas risadas são dadas e o teste “verdadeiro” é então retomado.
Nos últimos meses tenho acrescentado duas outras perguntas, também informalmente e na situação oposta, ou seja, quando o paciente está acertando a quase totalidade das respostas e o teste começa a ficar monótono: qual o nome do vice-prefeito da nossa cidade? Qual o nome do vice-governador do Pará?
Acreditem ou não, mas a primeira pergunta nunca teve resposta correta, nem dada pelos pacientes, nem pelos seus acompanhantes. Numa única vez, há poucas semanas, o filho de um paciente “quase” acertou, lembrando apenas que o vice-prefeito tem um filho que é ou teria sido prefeito de Vizeu ou Breves.
Quanto ao vice-governador, apenas um acompanhante acertou até hoje.
Eu então brinco dizendo que a pergunta foi feita de propósito, para ser errada, e o exame é retomado.
A memória tem peculiaridades infinitas e múltiplas facetas, porém necessita de uma unidade básica: o meme.
Acho que, diante do resultado obtido nesta pequena amostragem de um consultório médico, esta unidade pode sequer estar sendo gerada pelos nossos homens públicos.
Triste, mas verdadeiro.

7 comentários:

JOSE MARIA disse...

Scylla,

Por essa e por outras é que nós, paraenses ou não, mas viventes aqui em Belém, estamos demorando a perceber as desgraças da atual quadra, que ficam soterradas sob toneladas de marketing público e privado e de concreto.
Agora, com essa sua relevantíssima contribuição, percebo que é bem mais grave do que pensava, pois tudo acontece nessa unidade básica que, imagino, seja essencial e irrenunciável. Parece que estamos desafiando - e derrotando - nossa própria condição humana ao renunciar até mesmo a esse básico essencial e irrenunciável.
Lamento, e não quero parecer pessimista, mas a mim parece que estamos fazendo uma escolha, individual e coletiva. Pagaremos - nós e as futuras gerações - o preço dessa escolha.
Muito obrigado por tão relevante contribuição para compreender o que se passa dentro e fora de nós mesmos.

Lafayette disse...

Scylla, mas, pensando bem, até que é bom que estes dois memes não estejam sendo repassados! :):) ;)

Val-André Mutran  disse...

Simplesmente sensacional!
Arraso.

Scylla Lage Neto disse...

Alencar, lendo o seu comentário percebi que algumas gerações adiante de nós serão necessárias para reparar o "dano".
Obrigado pelas palavras.
Abs.

Scylla Lage Neto disse...

Lafayette, que tal uma "terapia de bloqueio de memes", a la Philip K. Dick?
Um abraço.

Scylla Lage Neto disse...

Val, como estão os memes aí no planalto?
Abs.

Lafayette disse...

PKD era um doido genial - qual genial não é doido?

O Homem do Castelo Alto (clássico do cara) foi minha estréia com o cidadão. Louco!

Estréia que parou por aí, não sei o motivo, mas, com esta lembrança, voltarei... (claro, sem falar nos filmes inspirados nas obras do alucinado, como o Minority Report e O Pagamento (achei meio fraquinho), com o Ben Affleck, e a minha antiga baby, Uma Thurman!) ;-)

Uma "terapia" dessas, nem o Richard Dawkins imaginou (na verdade ele imagionou um certo controle evolucionista deles, mas assim, tão determinante, não). Mas, "a la" PKD, tudo é possível...

...afinal, será que os andróides sonham com carneiros elétricos?