quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Inspiração patológica



Existe um jargão na neurologia que diz mais ou menos assim: “toda doença sempre traz alguma espécie de benefício para o paciente, podendo da patologia advir uma pessoa melhor como um todo”.
Se é verdade ou mero consolo, eu não o sei, mas em alguns ramos da atividade humana, como na literatura, a doença tem exercido importância absoluta no resultado final.
Talvez o exemplo mais clássico seja o do escritor inglês Lewis Carroll (pseudônimo de Charles L. Dogson), autor de Alice no País das Maravilhas e de Alice no País do Espelho.
Carroll apresentava crises terríveis e freqüentes de enxaqueca, com dor latejante e alterações visuais complexas, tipo distorções da realidade visual, tendo registrado-as detalhadamente em seu diário.
Pois ao leitor atento não passa desapercebido o fato de que as alucinações de Alice, vendo os objetos aumentando e diminuindo de tamanho (como o gato reduzido ao seu sorriso), têm um cunho patológico e relação direta com a enxaqueca do autor (e/ou com a tintura de ópio que usava para aliviar as dores).
E talvez esse seja um dos pontos que torna a obra tão interessante através de gerações.
Outros escritores “enxaquecosos” famosos são Virginia Woolf, Miguel de Cervantes e o neurologista Oliver Sacks, autor de O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu.
Ah, Freud também sofria de enxaqueca.
E isso pode explicar muita coisa...

2 comentários:

Belenâmbulo disse...

Prezado Scylla,

Leia o seguinte fragmento do Livro do Desassossego, e diga se Fernando Pessoa não sofria de enxaqueca.

"331.
Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas, mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.
Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nitída - uma relação visual, direi - entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina que céus não existem. Mas, ainda posso cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajecto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinária incomodar a que o é de menos.
Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás do cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim, agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espetáculo, nesse momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima porém não me ofendeu.
O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói a cabeça. E, neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anónima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer."

Scylla Lage Neto disse...

Sim, caro Wagner, o seu diagnóstico está correto.
Aliás, o texto permite também concluir que o fabuloso Fernando Pessoa sofria de sintomas que fazem parte do cortejo da enxaqueca, tais como melancolia, sentimento de culpa, desamparo e finalmente, depressão.
Obrigado pela inestimável lembrança.
Um grande abraço.