“Um homem que morre! Uma infelicidade;
cem homens que morrem! Uma catástrofe;
mil homens que morrem! Uma estatística”.
Manuel Ayres em: “Elementos de Bioestatística - A seiva do Açaizeiro”, 2011
O recente artigo "Um escândalo no ar?", de Gilberto Dimenstein (Folha de São Paulo, 13/07/2012), deixou-me encafifado. Li e reli algumas vezes.Percebi que, apesar da leitura fértil, faltou-lhe, a certa altura, uma dose de açaí do grosso, como se diz lá pelas bandas de Afuá - ilha do Marajó.
O ponto ralo do atraente texto foi quando o jornalista juntou duas grandezas matemáticas de universos distintos, engenharia e medicina, e misturou na mesma tigela (sim, medicina tem matemática). O texto, na realidade, retrata a preocupação com os pilotos brasileiros que não falam inglês fluente, colocando em risco a segurança dos voos internacionais: “Aviões raramente caem; erros médicos são cotidianos”, reza a porção inquietante do texto.
Até concordo que erros médicos sejam cotidianos, mas esta é outra discussão e não cabe na comparação com riscos de voos. O erro médico não tem exatamente essa dimensão que Dimenstein julga. De qualquer maneira decidi, antes, recorrer ao meu guru no assunto, o professor Manuel Ayres, no seu livro “Elementos de Bioestatística - A seiva do Açaizeiro”, no capítulo “Risco Relativo”.
Entende-se que Engenharia e Biologia são duas grandezas impossíveis de serem comparadas quanto ao risco. Cada qual tem sua relatividade. Uma é a matemática sem variabilidade, ou com mínimo desvio, no caso, a Engenharia - a mesma que, ao somar 2+2 dá, exatamente, quatro. A outra é a biologia, cuja variabilidade é a regra, isto é, quando a soma 2+2 tem probabilidade, e não a certeza absoluta de dar quatro. Se levarmos ao cabo que se trata de medicina, esse ramo particular da biologia, precisaríamos aplicar um teste para cada situação. Não basta mesclar e sapecar conceitos inferidos em matemática aguada. Testes como o de Fischer, Gosset, Karl Pearson e alguns outros são imprescindíveis. Todo esse pormenor da biologia, a Bioestatística, dispõe de regras caprichosas e específicas para calcular cada probabilidade, seja de erro ou de acerto.
No discurso acadêmico, portanto, não cabe misturar Açaí com Granola, pois o cânone universitário é um lugar de organização de pensamento e tão somente permite o experimentalismo metodológico. Não tenho dúvida que, na criação do texto literário isso não tenha qualquer valor. A esse ponto da literatura a verdade não interessa à inspiração, apenas à degustação.
3 comentários:
Não li e não pretendo ler o texto em questão, não me interessa tanto assim o que tem a dizer o autor, mas gostaria de opiniar sobre esse texto aqui.
Certamente não é simples fazer uma comparação cruzada e direta entre biologia ou medicina e a engenharia. No entanto faz-se necessário considerar alguns fatores. Pra começar, sobre qual, ou quais ramos, da engenharia estamos falando?
Vamos deixar de rodeios, o ponto essencial aqui é : aviação não está circunscrita a apenas um ramo da engenharia e não depende apenas de engenharia.
A aritmética (2+2=4) sequer é suficiente para tirar do chão um único avião de passageiros sequer. Imagina então mantê-lo no ar de forma estável, manobrável e segura.. Muito menos para manter milhares deles cruzando os céus do planeta diariamente.
Para esse nosso exercício de imaginação não estou nem mesmo considerando os esforços e empreendimentos necessários nos outros diversos domínios diretamente relacionados com a aviação moderna, tais como meteorologia, radares, comunição de rádio, satélites, GPS, logística, computação, etc… ufa!
Você já ouviu a experessã: o "a tempestade perfeita"? (mas dito em inglês teria mais impacto).
Portanto um número ínfimo de acidentes aéreos diários é sim um feito e tanto e merece ser reconhecido como tal.
Caro ASF,
Não temos como levar adiante a fértil discussão se não abordares o excelente artigo de Dimenstein, que dizes não pretender lê-lo. Porém sobre o artigo em epígrafe, não quero aqui vender a verdade, longe de mim, tampouco dizer que estou absolutamente certo na essência do pensamento sobre a fluência da língua inglesa entre pilotos, o cerne do artigo. Apenas quis mostrar quão imprevisível é a ciência médica, ainda mais a cirúrgica, que faz parte da minha comunhão com a vida, ficando impossível compará-las entre si. A engenharia (de voo, no caso) tem mais previsibilidade que Medicina. Quem dera pudéssemos ter uma “caixa preta”? Se assim fosse, nos corrigiríamos e preveniríamos outros futuros “erros” (acidentes). Posso te adiantar um pequeno trecho do excelente editorial da revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (maio/junho de 2012) sobre o tema, bastante aplicável à sua adubada moderação. Diz: “Em certos casos faz-se bastante complexa a delimitação entre erro propriamente dito, o acidente cirúrgico ou a desídia do cirurgião durante o ato operatório. O limiar entre eles é tão exíguo e inconspícuo que se torna praticamente inexistente e inexequível desmembrá-los” (Fernando Pitrez, Cirurgião gaúcho).
Caro Dom Quixote, esses Cataventos são difíceis de serem derrotados. AssÇ Sancho.
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