quarta-feira, 5 de setembro de 2012

A Maldição do Cachimbo da Paz

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Morei uns tempos no Xingu. Exatamente no Rio Iriri, quase na foz do Riozinho do Anfrísio. Tinha então, dezessete para dezoito anos. Havia parado de estudar. Tuberculose. Depois de curta temporada em uma casa de repouso no Ceará, aliás, um velho convento de freiras na Serrado Estevão, recomendação do Dr. Cândido Pereira, meu médico em Belém, fui dar com os costados no Seringal Praia. Era preciso completar um ano de tratamento e repouso, diz-que,  absoluto. Esse tal “absolutismo” naquela idade não durava três meses.
Na volta do Ceará, com a concordância do médico, eu me deveria recolher a uma fazenda, pois tuberculose é uma doença antissocial. Tudo separado e bem fervido. Dos lençóis às louças. Principalmente as louças.  O isolamento no interior era altamente recomendado, uma vez que as famílias procuravam esconder ao máximo a doença. Ia-se ao “tiziologista” quase às escondidas.
O seringal, não era exatamente uma fazenda. Tinha, se muito, cinqüenta cabeças de gado. O suficiente para garantir leite mugido e gemada com mastruz absolutamente necessários à superalimentação prescrita. A Farmácia do Povo, que fornecia medicamento para o seringal, aviou a receita. Um verdadeiro arsenal de comprimidos, frascos, seringas e agulhas – não descartáveis, claro – e mais alguns fortificantes que minha mãe receitou ou as comadres sugeriram. Era muita coisa. Estreptomicina, soro para diluir, hidrazida, PAS, e não sei mais o que. Eram uns comprimidos enormes, tomados as mancheias, mais de vinte por dia. Como o tratamento durava um ano, tive que interromper os estudos. Tuberculose era excludente. A parte boa foi que não poderia mais ir para a Escola Militar de Agulhas Negras, sonho da minha mãe. Pois bem, oito meses se haviam passado, desde a descoberta das tais “cavernas com nível líquido no Lobo superior esquerdo”, e já tinha até me esquecido que era um doente, mas sem  esquecer de fazer, religiosamente a medicação. Até por que, minha prima Marluce, escalada para tomar conta de mim, não deixava. Nos primeiros tempos, apenas lia, deitado quase o dia todo em uma rede branca, no alpendre do barracão. Os amigos de infância, filhos dos seringueiros, no fim da tarde, sentavam-se no chão para um dedo de prosa. Mas depois desse tempo, como se disse, a vida seguia normal, como sempre fora. Banho de rio, pesca de tracajá, canição, caçadas. Paradoxalmente, foi quando aprendi a fumar. Ainda não exatamente um vício, mas por distração e prazer. Alguns dos meus amigos, fumavam, mascavam e cheiravam rapé. Sem censura e sem remorso.
Nessa época apareceu por lá um grande sertanista, Chico Meireles, com uma récua de índios recém atraídos desgraçadamente para o, diz-que, amparo do SPI-Serviço de Proteção aos Índios. Com eles veio um caboco, com mais ou menos a nossa idade, que fez amizade com o Patoti, nosso companheiro, primo do meu irmão Frizan, que apesar de ser índio xipaia, falava a gíria caiapó. Talvez, por isso mesmo, logo estava fazendo parte da turma. Dizia chamar-se Mburá, ou coisa parecida. Para nós virou Imbuá. Tudo para ele era inusitado. Novidade mesmo. Do isqueiro Zippo do Bicoca, à lanterna de seis elementos do Joca. Não conhecia sequer o sabão. Claro que fazíamos com ele todo tipo de gozação, mas depois de algum tempo, não conseguíamos mais sair sem ele. Aí, já era ele que aprontava todas conosco, inclusive sumir e nos deixar perdidos no mato. Quando já estávamos próximo do apavoramento ele aparecia fazendo mungango, rindo, pulando e dançando. Com ele não aprendemos nenhuma palavra em caiapó, além das poucas que já sabíamos. Cedo ele aprendeu todos os palavrões em português e, para nosso desespero, os repetia com a maior naturalidade na frente de todo mundo, até do padre Júlio que estava de passagem pelo seringal batizando e casando por atacado.
Certa vez, na Praia do Cordeiro, pouco abaixo do Barracão, quase na boca do Riozinho, estávamos pescando de linha e o peixe estava escasso que nem beliscava. Talvez por que a lua estivesse um dia, mas o que importava mesmo era o papo. Papo de beira não tem fim. Quando tirei da boroca a bolsa de tabaco e comecei a esfarelá-lo na palma da mão, Imbuá ficou me olhando com o cenho franzido. Enrolei o fumo com displicência e imperícia no abade Colomy e acendi o cigarro porronca, mal enjambrado, no tição da fogueira. Ele então fez um gesto indagativo para mim que não entendi. Ambos olhamos para o Patoti, tradutor oficial da turma. Ele chegou perto do caiapó que explicou em sua língua. Patoti ouviu, ficou pensativo por um segundo, depois caiu
na risada:
- O caiapó é mesmo retardado. Ele quer saber por que tu estás fumando, se não é festa e não tem mosquito.
Com esta, em meio a gargalhadas encerramos a pescaria zombando do aparvalhado Imbuá que também ria sem saber de que.
***
Dez anos depois, talvez menos, nos encontramos em Altamira. Imediatamente, antes de completar os salamaleques de praxe, rumamos para o bar do Mimi. Tanto papo para por em dia pedia cerveja gelada. Não sei quantas horas passamos no bar nem quantas garrafas de cerveja rolaram. Ou mesmo cachaça. O assunto, també, não me lembro, mas uma observação do Bicoca ficou martelando na minha cabeça.
- Porra André tu fumas pra caralho. Quantas carteiras por dia?
- Cinco, disse quase com orgulho.
Nenhum deles havia fumado tanto, aliás, praticamente, não eram fumantes, apenas, exageravam, com dois ou três porroncas nas pescarias, à noite, quando o carapanã sovela do pedral atacava de turma, como se dizia por lá. Essa minha corriola do seringal quase nunca se aventurava em sair de Altamira. Não havia televisão ou cinema. Nem sorvete tinha. Por isso, era difícil, para eles, entender a aura do cigarro que envolvia alguém, pelo menos medianamente cosmopolita como eu. Não dava, até para não parecer pedante, falar dos bares da vida, das boates, onde a freqüência se media pela fumaça que pairava no ar. Café Central, Palácio dos Bares e Bar do Parque em Belém. No Rio de Janeiro, o Beco das Garrafas, as gafieiras, Elite e Estudantina, o chope do Amarelinho e do Cabral 1500 e, principalmente, o que fazer com as mãos sem um cigarro. Sim, aquela coisa maravilhosa que existia para desinibir o jovem e diminuir a distancia dos ídolos de então. Hunfrey Bogart, James Dean, Marlon Brando, Vinicius de Moraes. Os charutos do Fidel, do Guevara, do Tom Jobim. As piteiras das divas Marlene Dietrich, o Ajo Azul, Rita Hayworth, a Gilda, e por aí vai. Não há nada mais sensual de que uma mulher fumando. É, isso não dá para explicar para minha turma do Xingu.
***
Ontem cheguei de Altamira. Todo ano eu vou por lá e sempre encontro um ou outro da velha guarda. Desta vez estavam todos, ou quase todos. Até o Imbuá que assumiu de vez o nome. Imbuá Caiapó. Isso na nossa velha e boa ortografia portuguesa, mas quando o registraram usaram a língua oficial alienígena, indefinida, das ONGs, dos diz-que, antropólogos e da FUNAI, que substituiu o SPI, e virou Ymbuah Kayapó. Assim, mesmo com k e y. Frescura. Piloto de balsa da mineradora Canopus. Aposentado. Também estava lá o Eduardo Besouro, intelectual da turma, professor, que adorava contestar minhas teses. Ele, sem sair de Altamira, sempre foi o mais inteligente e culto de nós todos. Nem sei quanto tempo se passou desde aquele encontro no bar do Mimi. Foram décadas. Agora, todos avós, e só o Imbuá teimava em não ter cabelos brancos.
- Esse índio filho da puta deve pintar o cabelo escondido, disse o Joca só de sacanagem.
O papo começava a animar quando de repente todo mundo parou. É que eu, instintivamente, havia tirado um cigarro do bolso. Estávamos no gramado em frente ao restaurante Tucunaré, na Rua da Frente. Fiz pose. Quis botar moral. Bancar o durão. Não deu. Apelei.
- Porra, cara, não. Aqui, não. Já não agüento mais esse tipo de patrulhamento. Parece que todo fumante é leproso. Eu sou viciado, dependente químico, e daí?  Não faço mal a ninguém. O cigarro é a única droga que não mexe com a psique do drogado, não altera a sua personalidade e não se conhece um caso de alguém que haja fumado um maço de Free e tenha saído por aí a fazer merda.  As pessoas já olham pra nós com ódio. E isso é no mundo todo, mas aqui, não dá. Há muito que tenho pensado seriamente em mudar para a maconha. É muito mais bem aceita, é cult, tem até marcha, com direito a aplauso e tudo. Dizem que já há mais de duzentos congressistas a favor da liberalização. Até o FHC. Já pensaram quando eu desembarcar aqui e alhures, do alto dos meus setenta três anos, cabeça branca e suspensório retrô, fumando um tremendo tarugo de canábis? No máximo vão dizer: pô, esse velho é irado, mas não vão me discriminar. Dá um tempo. Principalmente Patoti e Imbuá. Não esqueçam, seus merdas, que foram os índios que inventaramessa história de fumar. Arrematei meio que rindo amarelo. O silêncio continuou por um tempo. Menos de trinta segundos, acho, mas pareceu uma eternidade, até que o “professor” Eduardo falou. Didático, sem censura, pausadamente, como é seu costume de sempre falar:
- Deca, pára com isso. Esse papo até que é bonitinho para fazer graça. Conversa de botequim. Mas se estiveres falando sério, não estarás respeitando nossa inteligência. Somos solidários contigo, e sabemos o que é uma dependência química. Faz tempo que acompanhamos tuas peripécias e sempre achamos que não chegarias vivo ao final do ano. Não falo das malárias e das tuberculoses. Isso é pinto. Curou, ta curado. Falo do exagero do teu cigarro que é droga de uso contínuo. Soubemos que há uns quatro anos tiveste uma isquemia cerebral lá em São Paulo. Ano passado, aqui na Transamazônica tiveste uma trombose na perna. Além de enfisema, fazes coleção de safenas, mamárias e stents. Quando falas assim estás sendo irresponsável, pois, como escritor és formador de opinião, e não é todo mundo que tem um bom plano de saúde e um filho pneumologista para segurar as pontas. Lamentar não é repreender, censurar. O teu amigo mais novo, aqui, o é há mais de meio século. De repente ele parou como que engasgado. Tomou um copo de cerveja, forçou uma risada e continuou agora em tom menos solene:
- Ah! E essa história dos índios e do tabaco foi no fundo a grande
lição que a humanidade não entendeu. Foram dizimados, quase extintos pelo fumo.
- Com essa, agora eu pirei. Para, professor. É muita viagem. Acho que quem está dando de pau na canabis és tu, falou o Bicoca.
A tensão arrefeceu e fiquei aliviado por não mais ser o assunto do papo.
- Essa eu quero ouvir, falei.
- Pensa bem, os índios descobriram a maravilha do tabaco, concordam? Pois é, mas nunca se ouviu falar de índio viciado, dependente químico, como esse porra aqui. Tabaco nunca matou índio ou índia. Nunca se viu curumim fumando. Pois é, a morte veio de maneira indireta, por portas e travessas. Fez uma pausa e continuou. Foram dizimados porque fumaram o cachimbo da paz com o invasor. Talvez houvesse sido de caso pensado. Vingança. Maldição!
Pedimos a conta, acendi outro cigarro. Ninguém falou, apenas, senti em todos a quase certeza que na próxima reunião haveria pelo menos um desfalque.
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André Costa Nunes

2 comentários:

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Marise,
A bem da verdade, uma aula de tisiologia e pneumologia contemporânea que poderia muito bem ser a abertura de qualquer congresso médico por essas imediações das ciências. A fala do André trepida em mim, em nós. Tenho lido esse autor com certa intensidade por iniciação do próprio André-Filho, o pneumologista, por quem tenho admiração profissional e pelo fato de trabalharmos muito próximos. Enviarei este texto a todos os pneumologistas do Brasil, no sentido de que seja possível dar uma aula de Tabagismo, Enfisema, Tuberculose e Câncer de Pulmão apenas contando causos e mais causos.

Marise Rocha Morbach disse...

Bela sacação Roger! Este texto é tudo de bom.