segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Para se ler no ritmo da chuva



“Uma nuvem mais pesada de chuva cresceu no céu. É chover. É chover, Cachoeira fica encharcada e ele encharcado com esta doença do osso, da alma, já no outro mundo. Os campos da Cachoeira vinham de longe olhar as casa da beira do rio, com desejo de partir com aquelas águas. Quando chovia, mesmo verão, quanta chuva grande, os campos ficavam alagados. Eutanázio gostava um bocado de passear pelos campos. De atravessar os campos para chegar à casa de seu Cristovão que ficava na ponta da rua para os lavrados. Às vezes para ver Irene chegava com a roupa escorrendo, os cabelos pin­gando. Irene ria... “
Dalcídio Jurandir em: “Chove nos campos de Cachoeira.”


É o tempo “dela”, costuma dizer o paraense quando o inverno amazônico chega sem dar trela. Nessa estação de chuvas carregadas e nuvens turvas, qualquer local friozinho onde se ouve ou sente os respingos “dela” é um bom lugar para se ler um livro. Não digo pelo dito de Djavan (“Um dia frio, um bom lugar pra ler um livro...”), mas por sentir que o frescor da chuva é um tempero azeitado para se harmonizar com a leitura, da mesma forma que se harmonizam prato e vinho - ou vice-versa.

Para esse novo ingrediente neuroquímico, leitura e chuva, tive a seguinte idéia: toda vez que chover neste inverno abrirei as páginas de um livro. Não um livro qualquer, mas “Chove nos campos de Cachoeira”, de Dalcídio Jurandir (reeditado em 2011, pois andou fora de catálogo desde 1976). Assim que acabar a chuvarada jejuarei da leitura e retornarei ao trabalho ou Blog, até que nuvens ressurjam em seus 256 tons de cinza e anunciem outra borrifada.

Nas primeiras chuvas das primeiras páginas do livro, a premiada obra recita um aguaceiro daqueles (epígrafe acima). Nas páginas seguintes se percebe os tradicionais burburinhos da tarde e céu claro. Depois volta o aguaceiro. Entre um pingo mais forte e outro mais fraco tem-se a impressão que Dalcídio escrevia sentado, acompanhando o ritmo das águas: ou por uma janela entreaberta, ou entre as gretas da casa de madeira ou ainda ouvindo o tilintar “dela” no telhado. Por isso  a ideia de ler a obra acompanhando a ambientação do autor.

É fato que levarei alguns meses nessa valsa. Em ritmo de aconchego com a natureza dalcidiana, me espicharei numa rede de varanda defronte para a baia, e lerei como se estivesse em Ponta de Pedras, terra do autor. Pretendo terminar a leitura quando as chuvas findarem, lá para março ou abril. Como gasto cerca de três minutos para ler cada página, 735 minutos de chuva seriam suficientes para ler toda a obra, composta de 245 páginas. Isso equivale a doze horas e 15 minutos de viagem literária pelos campos marajoaras, entre búfalos e cavalos baios. Nada mal. Vale chuva forte, vale chuvisco, vale alagado. O importante é djavaniar, ou melhor, com chuva é: dalcidiar.

7 comentários:

Marise Rocha Morbach disse...

Aproveite Roger; nada melhor que uma rede e um bom livro; fico na torcida pelo cronograma da leitura do Dalcídio Jurandir: vai dar certo!

Erika Morhy disse...

É certo que faz algum tempo, ali pela segunda metade da década de 90. De todo modo, a leitura de "Chove" só me traz lindas lembranças do talento de Dalcídio. Boa sorte com leitura!

Scylla Lage Neto disse...

Dalcidiar!
Mais um neologismo "Rogeriano" que serei obrigado a importar.
Rss.

PS: o inverno será rigoroso, segundo as previsões.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Marise,
A depender do volume de água e do roteiro, pode ser que eu acabe antes...

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Erica, valeu a dica. Foi um presente do meu filho. Ele tem bom gosto literário. Inclusive já se arriscou por aqui pelo Flanar.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Cilão, o ziguezague dos neologismos faz parte de nosso cotidiano. É quando, não raras vezes, trocamos a técnica (a linha reta) pela tática (o ziguezague). Você bem entende o que quero dizer.

Unknown disse...

Mesmo não havendo chuva, me concentrarei no cheiro e no som de sua anunciação para poder me aproximar dos sentidos que levaram este elogiado autor a descrever paisagens ,e quem sabe costumes, dos quais tive a honra de testemunhar e usufruir.Estou ansioso para ler e poder lapidar minhas sensações. Muito obrigado Roger !!
Walter Pinto