O romance é um
organismo vivo...
Benedito Nunes, em: “A Rosa o que é de Rosa.
Literatura e filosofia em Guimarães Rosa”
Quando me enveredei por “Grande sertão: veredas” (Guimarães
Rosa, 1957) vivia a árdua missão de escrever um livro médico. Levei dois anos encarapuçado
de escritor. Na ilharga das ideias guardava as palavras rosianas no mesmo ritmo
daquelas 501 páginas que me renderam algumas láureas científicas.
Enquanto escrevia, lia Guimarães no descanso de tela do computador
ou quando me acocorava no banheiro em busca, tal como Proust, de um
tempo perdido. E nesse período não trabalhei menos e nem deixei de dar aulas. Eu
vivia, para acalmar o aperreio de escritor, uma paixão inebriante por Guimarães
Rosa por se tratar de uma linguagem voraz, inventiva, que irrompia com o
tradicional escolástico. Isso desopilava meus neurônios e me deixava mais à
vontade para escrever aquele livro.
Desde então tudo que existe sobre Guimarães Rosa eu compro,
leio e guardo; releio e guardo; ouço e guardo. Até um dicionário já comprei. Livro de suas correspondências: já comprei. Fotografias: já comprei. Discos: já
comprei. E venho colecionando Guimarães desde então. Já até me apelidam de
Guimarães Roger.
E foi Rosa quem me impulsionou a conhecer o filósofo paraense
Benedito Nunes, que já se encontra no segundo andar desde 2011. Certa vez havia
lido que, aos sábados, ele fazia leituras filosóficas de Guimarães lá pelas quebradas
da BR, num templo católico. Fui bater lá. Era aos sábados. Benedito se
debruçava sobre a estética de “Grande Sertão”. Encantava-me sua interpretação.
Bené idolatrava o jagunço Riobaldo – e eu também. Esse encontro me levava a uma
reflexão dialética sobre o que eu estava lendo e sobre o que eu escrevia sobre
cirurgia. Acabou que, remando com Guimarães Rosa, citei-o em alguns capítulos
“travosos”, tipo assim: “E até respirar custa dor, e nenhum sossego não se tem”.
Esta é a epígrafe do capítulo Fraturas de costelas.
As reflexões filosóficas de Benedito Nunes ficaram na lembrança
pelo modo como ele virava do avesso aquela obra e me fazia entender aquele
sertão-mundo no mesmo compasso do Sertão-Mancha de Cervantes e do Sertão-Dublin
de Joyce.
Só que, a cada inverno amazônico, as enxurradas lavavam
minha lembrança daqueles encontros de sábado e avivava o arrependimento de não ter
documentado aquele momento. Fez-me doer as costelas. O tempo pui o
fio da memória e a oxida a cada chuva – digo.
Segui arrependido por todo aquele
tempo ido, até que fui passar o Natal lá pelas quebradas dos Geraes -
como se referia Guimarães Rosa ao seu torrão -, e, perpassando pelas livrarias
do aeroporto Val-de-Cans encontro o tesouro perdido: “A Rosa o que é de Rosa”
(Rio de Janeiro, DIFEL, 2013). Alguém resolvera recolher os pensamentos
filosóficos de Benedito Nunes e escrever sobre a relação fenomenológica dele com
o Jagunço Riobaldo. É claro que comprei sem perguntar o preço. Guimarães Rosa
não tem preço e Benedito Nunes vale todos os cartões de créditos. E o alguém
não é um alguém qualquer, é Victor Sales Pinheiro, um estudioso de Benedito
Nunes. O livro é formidável e tem o mesmo ritual do premiado “A “Clave do poético”, do
mesmo Victor Sales. o fascinante foi que me fez resgatar um pouco daquelas manhãs de
sábado. Então despertei do vácuo de minha memória.
Segue: Em “Grande
sertão: veredas” colocam-se, portanto, no mesmo nível, a ação verbal e a ação
romanesca, a palavra poética e a gesta, uma produzindo a outra incessantemente,
e juntas produzindo o sertão-linguagem, o sertão-mundo, cujas veredas são
também caminhos da língua portuguesa.
Além da linguagem, Benedito me
ensinou a entender os infinitos sertões-adentro de Guimarães Rosa.