domingo, 10 de novembro de 2013

Da arte de rir e de viver ou de uma quase auto-psicanálise pela leitura, nas raias da loucura

Jornalista e psicóloga, a espanhola Rosa Montero tem se consolidado como uma de minhas escritoras prediletas. Já devo ter dito que foi dela o primeiro e encantador livro em espanhol que li - o "Historias de Mujeres". Daí passei a acompanhar mais sua produção semanal para o jornal El País do que de fato seus demais livros, ainda que os tenha comprado. Estão na fila de minhas obras pendentes de leitura.

Escutá-la na Feira Internacional do Livro, em Buenos Aires, foi um deleite a parte, mas que se funde na mesma paixão.

Hoje me deparei com mais um genial texto da articulista. Rosa Montero me diz tanto, com sua tecelagem de informações históricas e sentimentos tão íntimos, que fico sem ter mais o que dizer. Preferi fazer uma audaciosa livre tradução e oferecer a leitores de boa vontade.

Ainda bem que a tenho a meu alcance.

Que desfrutem!

E, quem desejar, pode acessar o artigo original clicando AQUI


Aprendendo a rir
Rosa Montero

Eu acreditava, e assim o escrevi em meu livro mais recente, que não havia nenhuma foto da grande Marie Curie em que ela aparecesse sorridente. Ao contrário: seus retratos a revelavam invariavelmente austera, tensa e, inclusive, com freqüência, trágica; uma dura máscara de esforço e dor. Mas eis que uma leitora genial enviou para mim, recentemente, uma foto de Madame Curie - já mais velha e parecendo ainda muito mais idosa devido aos estragos causados pela radioatividade - muito próxima, certamente, do dia de sua morte, vestida como sempre, de negro, e também, como sempre, sem maquiagem e com os cabelos postos de qualquer maneira. Mas sorri. Sorri! Não é um sorriso franco, mas é um gesto indubitavelmente risonho. E a mim parece que essa pequena curvatura de seus lábios é uma conquista monumental da cientista. Talvez mais importante para ela, inclusive, que a descoberta do polônio e do rádio.

“O jovem que não chora é um selvagem, mas o velho que não ri é um néscio”, dizia o filósofo George Santayana. É uma frase profundamente comovedora; e creio que tive que chegar aos arredores da velhice para poder compreendê-la em toda sua sabedoria. As palavras de Santayana me fizeram recordar um de meus quadros preferidos: um auto-retrato de Rembrandt, o último das centenas de auto-retratos que fez. Foi pintado mais ou menos um ano antes de morrer e é um quadro quase monocromático; uma explosão de ocres, de luzes douradas e brilhos que se apagam entre as sombras. Por esta época, o artista devia ter 62 anos (morreu aos 63), mas parece muitíssimo idoso. Rembrandt foi um homem muito vital e, provavelmente, soube ser feliz em muitas ocasiões. Alcançou um tremendo êxito como pintor ainda muito jovem; teve vários amores; se casou, em segundas núpcias, com uma mulher que adorava. Mas logo a vida lhe passou a fatura. Seu imenso talento lhe impediu de continuar a ser o artista comercial que triunfa realizando retratos complacentes que lhe pede o mercado. Escolheu pintar cada vez melhor e de maneira mais autentica, e isso lhe fez perder a clientela. Seu êxito terminou, as encomendas deixaram de chegar e se encheu de dívidas. Para comer, teve que vender tudo, inclusive sua coleção de arte. Quando morreu, estava na mais completa miséria.

Saber gozar o presente é um dom precioso, comparável a um estado de graça.

O Rembrandt que pintou o último auto-retrato era este homem esquecido e arruinado. E não apenas isso: enterrou sua primeira mulher e logo também a segunda e muito amada esposa, falecida prematuramente, ainda que fosse muito mais jovem que ele; por último, também teve que suportar a morte de seu filho Titus. Apesar de toda esta devastação, ou seguramente por tudo isso, o Rembrandt deste auto-retrato sorri. Na tela, debruçado de escorço na janela, o pintor nos contempla e parece nos dizer: veja, esta é a vida, a grande piada pesada que é a vida; assim é a inocência dos humanos, assim o afã, o fulgor, a dor. É um sorriso triste, mas sereno e imensamente sábio.

“A arte é uma ferida feita luz”, dizia o pintor francês Georges Braque. Outra frase certeira que me vem à cabeça quando lembro deste quadro de Rembrandt. A luz outonal do rosto do pintor emerge da escuridão do fundo, da escura ferida da vida, cauterizando e suavizando sua dor e a nossa. Pelo menos, Rembrandt teve sua arte até o final (o valor de seguir pintando, de não render-se). Pelo menos, nós temos a Rembrandt.

A arte nos salva, a beleza nos salva, e a vida, se for vivida com consciência de viver e tentando aprender do vivido, talvez nos proporcione essa compreensão final, esse entendimento apaziguado que permite que aflore o sorriso.

No Natal de 1928, Marie Curie mandou uma carta a sua filha Irene, para lhe felicitar pelos festejos. E escreveu: “Desejo a vocês um ano de saúde, de satisfações, de bom trabalho, um ano durante o qual tenhas cada dia o gosto de viver, sem esperar que os dias tenham tido que passar para encontrar sua satisfação e sem ter necessidade de colocar esperanças de felicidade nos dias que tenham que vir. Quanto mais se envelhece, mais se sente que saber gozar do presente é um dom precioso, comparável a um estado de graça”. Creio que estas palavras são a conquista de uma vida. E o insólito sorriso de Curie na foto que me enviou a generosa leitora é, sem dúvida, uma conseqüência destes pensamentos. Alcançar essa maravilhosa simplicidade não é fácil, desde logo, assim que é necessário se dedicar. Aqui estou, enfim, tentando aprender a rir dia a dia.

Nenhum comentário: