Quem
tem a vida bordada pela cirurgia
não
sabe viver sem as costuras do desafio
Diante de mim há um vasto rio - o
maior do mundo - que me envia um de seus longos braços e nele implanto minhas
mãos e dedos de escrevinhador insólito. Daqui, d'onde tamborilo o teclado, ponto eqüidistante entre o Alasca e a
Patagônia, sob o cerol do Equador, miro no oeste onde o sol se esvai. Há uma linha imaginária que passa sobre minha cabeça, que não só separa o planeta em dois
hemisférios, mas também meus hemisférios cerebrais em dois planos: direito e esquerdo.
À direita, no prumo do Alasca, estão na mesma fila de internação F.L.S, 67 anos, que chegara ao hospital com seu motorista,
e N.H.M, 63, descera do ônibus, encaminhada por um médico da vila de Eastmain, banhada
pela baia de Hudson, a léguas e léguas de Quebec. Em comum, o vício do tabaco e uma mancha no pulmão. Ambas terão parte de suas vísceras retiradas a “laser”. Foram internadas na mesma enfermaria e vestiram o
mesmo roupão, apesar de condições sócio-econômicas distintas.
Também consentiram que suas operações
fossem transmitidas ao vivo, com fins acadêmicos, para um auditório com 40
cirurgiões latinos que, longe de seus grotões revivem novo ciclo de suas vidas
profissionais - oxalá, o maior deles. As operações foram sob a batuta de Paula
Ugalde (hoje no Canadá, a convite, mas ainda conserva o sotaque nordestino) e Thomas
D’Amico (Duke University, Pittsburgh, EUA). São cirurgiões consagrados, mas
isso não basta para eles; carregam a necessidade de fatiar o saber e o repto de ensinar ao ar livre, ao vivo, pois quem tem a vida bordada pela
cirurgia não sabe viver sem as costuras dos desafios.
Ambos têm a técnica apuradíssima,
revelando movimentos seguros e pontuais ao dissecar cada estrutura anatômica, a bem lembrar o movimento do Folivoro de dois dedos. Ao término
de cada operação os dois rediscutiam cada caso, ponto a ponto, frente a
frente. Tal modelo gerou aprendizado imensurável, fazendo com que cada
apresentação deixasse todos com fôlego apurado e certezas de que voltariam
para seus remansos com perspectivas afiadas.
A Laval abriu as portas para mostrar rotina,
verdades científicas e o que há de novo em técnicas operatórias, incluindo os
“pulos do gato”. Foi uma semana intensa no Institut Universitaire de
Cardiologie et de Pneumologie, da Universidade de Laval, Quebec, Canadá.
Na verdade essa já é uma idéia antiga
do Prof. Jeans Deslauriers, ex-chefe, que sempre teve um olhar apaixonado pela
América latina, particular ao Brasil, onde cativou amigos e um punhado de
pescarias pelo Araguaia. Ele já vestiu o pijama, mas em seu discurso de abertura do evento ficou claro que a semente plantada estava embebida no vinho do altruísmo, para que Ugalde e D’Amico servissem com alguns canapés e a possibilidade de goles extras.
Jean Deslauriers |
Por fim, na visita pós-operatória as duas pacientes, além de simpáticas e franqueadas a conversas, sentiam-se imensamente satisfeita não só pelo resultado, mas pela capacidade de terem ajudado cirurgiões do outro lado do Caribe. E a surpresa foi que não se conseguimos distinguir a classe social de cada paciente, pois o sistema canadense é cego à distinção social.
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