domingo, 30 de agosto de 2015

Sobre coisas coronarianas

                                      Coração de gente — o escuro, escuros
Guimaraes Rosa, em: Grande Sertão: veredas

Já quase duas da tarde, num calor equinocial, eu dirigia pela Generalíssimo quando o telefone tremeu. Reluzia o nome do amigo maranhense, de São Luiz.
-Alô, Urubu!
-Fale, Urubu!
Encostei o carro à sombra de uma mangueira. Passamos a nos assim depois de termos lido “Selva Concreta”, crônica policial de Edyr Augusto, premiado escritor que vive por essas beiradas. O cognome é de um personagem engraçado; repórter investigativo de crimes da periferia de Belém. Gostamos do livro e adotamos o nome pelo apreço ao mestre do voo. O chamamento amistoso tonificou-se após viagem para Barcelona, porventura da visita ao Serviço do prof. Rami-Porta.
- Rapá, eu estou emocionado.
-Como assim, Urubu?
Elias é de Pindaré, Maranhão. Vez por outra vem bater em Belém para prosear sobre amenidades de nossa ciência preferida. Guardamos, entre poucos gurus e gênios, um que mora no outro lado do país, pras bandas dos pampas. Consideramos José Camargo não só pela sabedoria, mas pelo seu altruísmo e tudo que represente generosidade a um ser humano notável e apaixonado pelo traço do bisturi e da caneta, quando faz vez de escritor. Costuma a nos chamar pelo nome - coisa de vizinho de porta, apesar de morar tão distante.
Estamos acostumados a convocar esse gaúcho de quase dois metros de altitude para destrinchar os mais complexos casos de nossa especialidade: desde a mais simples técnica operatória a mais complexa etapa de um transplante de pulmão; sempre responde aos pedidos como se estivesse bebendo água de coco às margens plácidas do Guaíba.
-Rapá, eu liguei para o doutor Camargo para discutir um caso complexo. De primeira ele não me atendeu, que já achei estranho. Posteriormente ele me retornou, mas desta vez eu não pude atender, pois estava jogando bola com amigos de minha Pindaré querida. Cheguei tarde, vi o chamado, mas não quis retornar para não ser inconveniente. No outro dia, cedo disquei e discutimos o caso de forma equânime, como sempre.
- Sim, mas o que te fez emocionar, Urubu?   
-É que o homem estava entrando numa sala de cirurgia.
- Sim, mas qual é a emoção nisso? É a vida dele!
-Mas é que dessa vez ele ia ser operado, ou melhor, cravaram um stents nas coronárias dele. Só que antes de adentrar, ainda no corredor e com aquela roupa que deixa os traseiros ao vento, tirou minha dúvida. Assim... como se fosse assistir a um treino do Grêmio. Pode isso? Fiquei acuado. Ele poderia nem atender a esse pindaíba de Pindaré. Que nada! Ele queria era continuar ajudando. Acho até que seria capaz de operar alguém antes de ser anestesiado, só para relaxar o coração e soltar a musculatura da perna. E, assim que acabasse, para testar os stents, seria capaz de realizar um transplante pulmonar duplo.
- impressionados com mais essa prosa, por fim, desligamos. Acionei a ignição e segui. No caminho tinha a igreja de Nazaré, onde finda o círio. Fiz umas orações com figa - coisa de quem tem fé - e roguei pro gigante se aquietar. Era só o que eu sabia fazer; depois segui pro trabalho. Não tive outra vontade senão a de ligar e dizer que estamos aguardando suas eclusas coronarianas mais abertas para a nossa medicina cada vez mais escassa de catedráticos.
Três dias depois, ele recuperado, passei o telegrama achando que agora ele teria de se aquietar de vez. Respondeu à sua maneira:
-Se com a DA [coronária] estreitada eu me sentia o máximo, qual o sentido de repouso com a coronária lindamente dilatada?
            ... Amém, homem de fé.

4 comentários:

Abel Sidney disse...

Newton, sabemos, dizia que todas suas descobertas científicas eram devidas, em grande extensão, aos gigantes de Alexandria e doutros cantos do mundo antigo, sábios que vieram antes dele e lhe abriram caminhos...

Foi do alto de seus ombros que seus olhos conseguiram vislumbrar os rudimentos dos complexos mecanismos do Universo.

Hoje não temos mais os grandes gênios, pois eles se confundem com seus pares, na grande cadeia de revezamento necessária à construção do conhecimento.

As relações se tornaram mais horizontais, a despeito da autoridade moral e vertical dalguns gigantes, que se fazem pequenos para ter a companhia dos seus pares...

Em todas as áreas existem os verticais por mérito, que espraiam saber e solidariedade. A diferença, nalguns recantos, é que há escribas de plantão, como o Roger, que lhes denunciam a presença com verve e gratidão.

Grato, pois, amigo velho, por nos revelar mais uma figura ímpar do seu panteão particular, este gaúcho que merece nossas mais efusivas saudações!

Ave!

Geraldo Roger Normando Jr disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Valéria Normando disse...

É de se admirar o amor de uma HOMEM pelo que faz... Vida longa ao MESTRE.

Sérgio Lima Jr disse...

" O verdadeiro Mestre é aquele em que seus discípulos, o superam !"