Um pé de lugar foi plantado no meio desse sertão amazônico, a meia légua de onde moro. Estava no meu encalço
antes mesmo de eu virar mundo.
O povoado fica escondido nas entranhas do maior rio do mundo. Dista 27km de Santarém, correspondendo, no verão da estiagem, a três horas de voadeira no sentido norte, cruzando o encontro das águas do Tapajós com o gigante. Ziguezagueia-se pelo rio, passando por tufos de
terras. Depois das reservas quilombolas pega-se o beco da esquerda pela boca do
Tapará, passando por Costa do Tapará, Tapará-Mirim, Igarapé da Praia,
Igarapé do Costa, Aramanaí, até bater na Água Preta. É um trajeto serpiginoso que nem o Google
Maps avista. É quando rio vira rua e Água Preta sai do meu encalço para aportar no meu coração.
No caminho, casais de botos Cor-de-Rosa e Tucuxi nos saúdam bem perto.
Mauro diz que eles estão fazendo saliência, mas acho mesmo é que guardam
segredos do fundo do rio.
No itinerário somos Marcelo (irmão), Mauro e Rui (primos). Estes
dois nasceram lá, assim pra mais de vinte que moram em Santarém. Nós, os
filhos da Marina, somos os únicos que nascemos fora do eixo. Fui parido às
margens do Juruá, mas engametado por aquelas bandas, segundo Tajá-Panema. Quando dei por mim, Água Preta veio porejando da memória de minha mãe e fui aparando tudo numa tigela da emoção.
Ainda moram alguns primos por lá, mas a maior parte deserdou para
Santarém, ainda adolescentes, para estudos. Só ficou Beto, que hoje cuida
do povoado e da memória da família.
Quando aportamos no barranco, Beto e esposa receberam-nos com um abraço
gentil. Em sua casa simples de madeira havia preparado almoço: na brasa, uma
banda de Pirapitinga gorda. Comemos até tufar o bucho – na gíria de lá -,
cercado por Papagaios, Passarinhos e uma enxurrada de Macaquinhos-de-cheiro.
Depois da Pirapitinga fui, passo a passo, me incorporando à terra.
Saquei umas fotos e me alojei dentro do útero daquele lugar, que pariu minha
mãe e outros quatro irmãos dela. O verde denso tem cheiro próprio, mas o rio,
neste período, fica raso, e os tesos emergem deixando um vazio abissal de
terras caídas, para se tornar palco onde Garças se tornam bailarinas. Por lá não falta peixe, ovo
de tracajá, canto de Jaçanãs e Papagaios. Pode ser observado também um silêncio que poderia ser dito como ar novo ao meu pulmão recém-transplantado de anseios.
Fui fotografando o que me atingia, até encontrar Jaqueline com sua íris negra e sorriso que se encaixa com a simetria do lugar. O écran da minha câmera
percebia certo exagero na inteligência supratentorial daquela menina de 10 de
idade. Transmitia equilíbrio entre homem e espaço sem perder ternura. Depois de
perguntar o nome, ela me respondeu o sobrenome. Pronto! Descobri que tenho uma
priminha ribeirinha. Deu vontade de colocá-la no braço e acalentar no ritmo
daquele lugar, ao dedilhado do violão do Tião. Imaginei minha mãe naquela
idade, carregando os olhos daquele grotão dentro de um jamanchim rodeada de
folhagem.
Decerto, naquele meridiano do planeta, rés aos pés das Sapucaias
preservadas pelo óxido do tempo, está a oração certa para esconjurar assaltos
de demônios, rastros de cidade e guerra entre policia e bandido.
Água Preta guarda na cor negra daqueles olhos a fluidez da paz e uma
harmonia hereditária que já passa dos 100 anos de férteis gravidezes.
Difícil foi espiar o rumo de casa com a mesma retina... Difícil. Labareda, do bando de Corisco