Raúl Zaffaroni, entre representates de Clacso e Umet (Foto: Erika Morhy)
Alguém aqui se preocupou com o que acontecia no Brasil em 1964? Pode-se ouvir um curto e fundo silêncio no participativo plenário, quebrado pelo próprio Raúl Zaffaroni: temos uma consciência regional para ser fortalecida.
Lá vem textão!
A terceira aula do
curso internacional “América Latina: cidadania, direitos e igualdade”, ministrada pelo juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte DH), em Buenos Aires, no último dia 13 de maio, foi tão incrível quanto as duas primeiras: a do ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica e a do professor da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos. Fiquei tão encantada que senti dificuldade para escolher por onde iniciar este brevíssimo relato.
Mas se eu tive dúvidas, os apresentadores da aula foram seguros e unânimes em deslanchar seus discursos levando em conta o golpe no Brasil como exemplo de que é redobrada a necessidade de pensarmos criticamente o estado da América Latina nos dias atuais e alguns caminhos para tornar a região mais habitável universalmente, aspecto que, aliás, foi seguidamente citado pelo advogado argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, no decorrer da aula.
Não quero me deter em todas as linhas de discussões abertas tão refinadamente pelo ex-ministro da Corte Suprema de Justiça e suas ironias requintadas, ainda que vá citar algumas delas. Gostaria mesmo de compartilhar referências que me soaram muito familiares. Referências a questões que são atuais para a Argentina, para o Brasil e muitos outros países.
Um dos problemas que devemos observar e levar em conta, segundo Zaffaroni, ao nos depararmos com a fala de gestores e grandes meios de comunicação é o conflito dentro de uma mesma classe social. O juiz reitera, com uma série de exemplos inclusive, que provocar e acentuar contradições internas são estratégias muito funcionais e que devemos nos recusar a aceitar. Ele explica os altos índices de homicídios na capital argentina a partir das tensões dentro das periferias. “O fator que mais influencia no número de homicídios em Buenos Aires é o conflito dentro dos bairros periféricos. Matam-se entre si. Não é como querem que acreditemos: que saem de seus bairros para cometer assassinatos na classe média, em bairros mais abastados”, finca pé e acrescenta que este é um quadro característico dos países da América Latina como um todo.
Num panorama onde 30% da população estão incluídos entre os beneficiários do Estado e 70% estão excluídos, fazer com que cometam assassinatos entre si ganha cores de controle da desfuncionalidade. É terrível ouvir isso, mas é necessário sabê-lo.
Tóxico? Cocaína?
Esses elementos precisam ser bastante relativizados no processo de compreensão dos responsáveis pela violência, afirmou Zaffaroni. Primeiro, porque boa parte dos países da América Latina não é produtora da matéria-prima. Na Argentina, ilustra, no máximo pode existir algum laboratório na região norte, fronteira com Bolívia. Segundo, porque os estados da região têm se dedicado a proibir o consumo de tóxicos – a cocaína entre eles – e a proibição só agrava o cenário, defende. “Produzir a cocaína é barato, porque não tem valor agregado. Se proibimos a cocaína, fazemos subir de preço o que mais vale, que é o serviço de distribuição”.
Adivinhem, leitores, quem sai ganhando nesse jogo, entre os países da América? Isso, Estados Unidos. “Não produzem; não competem por mercado; detém uma rede de distribuição que deixa 60% do valor comercializado dentro do país; arrecadam com a venda de armas a narcotraficantes; e ainda dominam 100% do negócio da reciclagem”, elenca o juiz.
Concentração dos meios de comunicação
Mas eu havia dito que Zaffaroni citou os meios de comunicação. Volto ao ponto. A concentração dos veículos não apenas detém o monopólio da informação, pura e simplesmente; ela provoca um monopólio da construção de realidade.
Entre nós, da área da comunicação, pode parecer algo óbvia a afirmação do juiz, mas para uma platéia ampla, ainda que majoritariamente da área de Ciências Sociais, é um aspecto que precisa ser mais detalhado. E ele não se intimidou. “Eu moro no bairro de Flores e não sei o que acontece no bairro de Matança, por exemplo. No México, os homicídios – muitos deles com requintes de crueldade - são divulgados tão cotidianamente pela mídia que as pessoas passam a crer que a violência é normal, que os mexicanos são violentos”, disse ele, com um leque de ilustrações sobre vários países. Um segredo: aqueeeele, aqueeeele oligopólio do Brasil também foi citado [não contem pra ninguém, porque é uma suspeita muito recente – contém ironia].
Tal reducionismo sobre a população de um país é definido por Zaffaroni como fruto de racismo, ainda que devamos considerar a natureza selvagem do ser humano. Alguém discorda? Muitos e por diversas razões. Eu estou com ele.
Reducionismos
Aproximando-se mais de sua área imediata de atuação, o juiz da CIDH faz lembrar que a humanidade carrega o fardo de um poder punitivo que é seletivo, de acordo com os estereótipos negativos construídos pelas sociedades. Seletivo e corrupto, complementa. E nem é com ele que temos de contar, muito menos para controlar a violência, os homicídios, o genocídio.
Não vou me arvorar a descrever a aula de criminologia e sistema penal oferecida generosamente e com tanta clarividência por Raúl Zaffaroni. Mas vou tomar dele uma certeza que é muito difundida nos meios acadêmicos: necessitamos enfrentar a realidade desde um conhecimento construído no trabalho de campo, caso queiramos prevenir a violência.
Pra mim, ficou uma dica: sejamos os selvagens que somos, mas sob controle, pela construção de um mundo em condições de permitir que todos vivamos bem. Será que é isso?
Boa luta para nós!