Ao pão e ao vinho que lhe servem de repasto
Eis que misturam cinza e pútridos bagaços
Charles Baudelaire, em: “Flores do mal”
Caríssimo diretor,
Certamente a mãezinha da pequena Sofia - de um ano e nove meses -, não terá chance de ler “Flores do Mal” (Les Fleurs du mal, em francês), de Baudelaire. Mas se o senhor der de cara com a obra, não pense sorrateiro. Avance. Enganche seu cérebro na ideia e divague pelos poemas - sem desespero. Tampouco pense que tudo possa virar urtiga e passes a passar suas manhãs inteiras com pruridos na Pineal.
Mas vou adiantar: “Flores do Mal” vai lhe expulsar do paraíso. Vai fazer o senhor entender que no pupunhal existe sombra, mas ao encostares ao tronco, ou deitares na relva em busca de descanso, serás apunhalado pelo espinho. A mãezinha não sabe da existência de Baudelaire, mas sabe que debaixo dessa palmeira existem exílio e alívio, basta não se encostar.
Sofia teve pneumonia necrosante, cuja imagética desvela uma cratera no pulmão. Após 15 dias de pequenas operações e antibióticos pesados, que mais parecia aquele cogumelo de urânio jogado sobre Hiroshima, restou a árvore respiratória esfacelada, carcomida por bactérias, mas a vida salva. Uma operação maior seria para tirar os resíduos pútridos da infecção e identificar possíveis locais de escapamento de ar para se corrigir por manobra cirúrgica.
A criança, antes de se deitar para iniciar seu périplo, sorria de tudo. Desde a maria-chiquinha que as enfermeiras ornavam com gazes, aos adereços para monitoração - ainda tinha o bipe dos aparelhos marcando os compassos do coração avexado. Ali, dentro daquele santuário, todos colimavam olhares abençoados para Sofia, sobrando uns tantos raios para Pompeu, o alquimista da anestesia. Aline, por sua vez, fitava-me com certa desconfiança; a mãe estava perdida no meu olhar.
A operação, em si, foi difícil, longa, mas nada que a separe da realidade de um hospital público brasileiro, cujos pacientes já chegam em fase avançada de suas mazelas. Tudo começou às quatro da tarde e varou a noite da sexta-feira, até acabar, lá pelas oito. A questão baudelairiana, entre cinzas e bagaços, vem a seguir: caso grave e o hospital não dispõe de UTI pediátrica e especialistas, apenas o leito. Nesta sexta, nem a ímpia fantasia de um leito fazia sombra em meu delírio.
Mas para enfermeiras e residentes isso nunca foi problema. Eles cavam noite ao lado de pacientes em busca dos sinais vitais desaparecidos na nebulosidade de uma operação torácica. Cochilo, para eles, é para fracos. Durante a madrugada ficaram me informando, on line, sobre os tais sinais vitais e o perigo maior: risco de sangramento para quem tem apenas 8 kg.
Do outro lado da linha eu ouvia Summertime, na voz da Natália, O “afoxé do guarda chuva achado” na do Marco. O outro Marco cantava Renato Russo; Eudes e Enrico em ação de graças a Pedrinho e Joãozinho. Até baixar a adrenalina e o sono chegar, já madrugava. Deitei ao acalanto do ressurgimento dos sinais vitais, quando a ampulheta da morte fora desligada. No véu da noite, Sofia sofreu. Vivia assombrosas horas entubada naquela sala vazia e fria de sentimentos... e acalentos.
Cedo despertei com rajadas de vento e a luz leste. Corri pra ver Sofia. Cheguei e ainda artificialmente ao léu da enfermaria comunitária iluminada pelo mesmo sol que me despertou. Vi que voltaram as marias-chiquinhas. Alívio e esperança!
A mãe carregava o olhar frontal excruciante da poesia de Baudelaire, pois não entendia que o funeral do seu anjo estava adiado. Concluí que já não sei mais caminhar descalço e atravessar cercas de arame farpado, pois Sofia furou minhas luvas com espinhos de pupunheira. Só sobrou-me a ponta dos dedos para escrever sobre suas dores.
Tenha uma boa segunda-feira, senhor diretor. Sigamos ao pão e vinho que nos servem de repasto.
8 comentários:
Aline agora pode escalar pupunheira, atravessar pupunhais correndo, brincando, com suas tranças bem arrematadas por aquela maria-chiquinha que poucas pessoas sabem a cor e o formato.
Não sabia que bisturi também arrancava espinhos em escala amazônica, despelando pupunhais! Agora sei.
Não muito mais e a mãe de Aline descansará sob a sombra de palmeiras e sonhará com o futuro da filha...
O cirurgião que lê Baudelaire e deixa suspiros em suspenso nas enfermarias e nas telas dos amigos distantes que o acompanha, bem este cirurgião sabe lidar com "raízes amargas", principalmente as do coração e da consciência e as tem arrancado, preventivamente, em ato heroico, antes que elas façam morada e embace sorrisos e olhares. Aí não há absinto que faça esquecer o amargor d'alma!!
Parabéns Roger, pelo texto, além de nos dar esperanças, que podemos , mesmo com todas as dificuldades, tentar a cura, no serviço público! Continue lutando e mantendo unidos, a sua abnegada equipe!
Aline com seu espinho de pupunheira, infectou o dedo que versa e traça linhas oxigenadas de Dalcídio e seu caroço de tucumã. Baudelaire expulsa do paraiso. tuas linhas costuram armistíscio. o intertício entre as lembranças chegam carregadas de cores e cheiros das que já há muito viví e outras que sinto imensa saudade apesar de nunca te-las vividas. Aline, sua mãe e o autor costuram a boa literatura. parabens mano.
Que bonita Aline. Que bacana poder expressar leveza onde se vê pesar. Aline me fez lembrar um pequeno cartaz que uma criança levava nas mãos durante a marcha Ni Una Menos: a caminho de casa, quero ser livre, no momento sou valente.
Viva, Aline!
Mais uma bela crônica, Roger.
Égua, Abel. Estou prosa depois deste teu comentário. Nem sei se sou merecendente.
Rocha, eu resumiria tudo à epígrafe baudelaieriana: "Ao pão e ao vinho que lhe servem de repasto/ Eis que misturam cinza e pútridos bagaços"
Dudu, acho que todos nós precisamos beber do vinho inebriante engarrafado por Dalcídio. Uma vez afeito ao seu jeito de escrever, a gente virar dalcidiano. Eu sou quase um Missunga.
Erika, Aline ainda sobrevive... Está muito grave, mas ainda sobrevive. Estamos repleto de esperança que ela saia bem, pois estão todos envolvidos. Ela vai voltar pra casa, livre e mais valente.
Viva, Aline!
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