segunda-feira, 27 de junho de 2016

A fogueira dos Sussuarana

Quando ontem adormeci                                                        
Na noite de São João                                            
Havia alegria e rumor                                  
Estrondos de bombas                               
luzes de Bengala                    
Vozes, cantigas e risos        
Ao pé das fogueiras acesas. 
Manuel Bandeira

Moléstia extirpada, indumentária desamarrada, assim como luvas no expurgo – e paciente já acordado-, fui içado para um terreiro de São João. Era dos Sussuarana, família que mantém a tradição de fazer o fogo na porta de casa e deixar a madeira queimar a ponto de se sentir o bafo. Tinha pé-de-moleque, mungunzá, arroz com galinha, maniçoba, foguetinho, estalinho e crianças pulando em volta do fogo a imitar as tradições nordestinas.
Só não tinha rapadura, ronco do fole e luz elétrica, pois, um vendaval gerou pane no sistema de transmissão, causando caos em Macapá. Aquela escuridão era o que faltava para a fogueira ganhar contornos de originalidade.
Lá o fogo sobe e o som desce, mas não vai até o sol raiar. Quando os pequenininhos começaram a esboçar sono, os pais arrumaram as mochilas e se mandaram, de modo que antes da meia-noite a festinha já findava. Só ficaram os marmanjos a bebericar sobre o vendaval da origem dos Sussuarana.
A reunião anual da família invocava quatro gerações, rara para os dias de hoje.  É a forma de homenagear o chefe do clã e fazer vez à origem do nome. Os Sussuarana, vi na cartilha, vem dos Suassuna que, via costeira, migraram do nordeste, reescrevendo a história da seca. Mas os descendentes descrêem dessa hipótese e acreditam na raiz amazônica da alcunha. Seja lenda ou verdade, pouco importa, vale o relato literário.
O fundador do terreiro, que já subiu com os balões juninos do passado, foi o tapuio João Sussuarana, cujo filho, Orivan, casou-se com Terezinha, a matriarca do terreiro. Orivan costumava lembrar o mês de Junho como festa do aniversário de João, seu pai, a ser comemorado no dia de são João, mês que ele elegeu ter nascido, já que não tinha sequer certidão de vida.
Foi quando a conversa chegou ao umbigo. Reza que o paladino sentia inveja de seus parceiros pelo fato de não ter um sobrenome. Era homem rude, musculoso, de bigode baixo, tez paquidérmica de tanto sol e baixa estatura, mas não passava de João. Não fazia ideia da idade, pois perdera os pais cedo, por conta das agruras da caatinga.
Quando chegou na costa do Amapá, em barco, ficou encantado com a vegetação e a abundancia de água. Certa vez montou numa canoa e pegou o Jandiá. Quer inverno, quer verão, a água daquele lugar era elemento dominante. O alagado da terra exsuda linfa e vegetação; o ar é saturado de umidade, que nas noites carregadas de sereno envolve como um lençol molhado; o reino animal e vegetal é representado quase que só por aquáticos1, o chão deixa-se carimbar pelas pegadas de onças e outros bichos.
Beirando o Jandiá, João seguiu pegadas suspeitas. À frente deparou-se com uma onça parda, bebendo água, também conhecida como Sussuarana. Ela espreitava João com um olhar voraz, de quem queria fazer caldeirada. Mostrou as presas como gesto de soberba. João vergou na mão direita um pedaço de galho seco e denso, e na esquerda uma peixeira, herança do pai. Sua ideia era abraçar a onça e dá-lhe no pescoço, jamais fugir. Sussurrou mais que a Sussuarana, a ponto dela dar um passo para trás e recolher a dentadura. Não deu em morte, mas onça vazou mata adentro num compasso desconfiado.
No dia seguinte João voltou ao Jandiá. Era crepúsculo do dia. Reencontrou a mesma Felis Concorra lambendo o rio. Numa batalha em que não lhe custou 0,5ml de sangue, seccionou a jugular. O felino, esguichando sangue, tentou escapar, mas sucumbiu a menos de quinze metros: choque hipovolêmico exanguinário. O sangue do felino toldou a água do Jandiá e calou o bioma. João arrastou a Sussuarana para canoa e transportou o felino até a cidade. Ganhou o nome de João da Sussuarana e, por conta da epopeia, chegou a fundar bloco carnavalesco conhecido como "João da onça".
Portanto, são João, para os Sussuarana, soa memória. O fogo, reacendido aos junhos serena origens.

4 comentários:

Unknown disse...

Reproduzi o texto à Família! Sou casado com uma Sussuarana , que me deu duas oncinhas! Muito bacana essa passagem! Sei que todos do Clã , iram agradecer a homenagem ! Valeu Roger!

Oriene sussuarana disse...

Nos sentimos linsongeados por vc naquele momento nos enxergar com seu olhar poético... Somos assim.. Como o João, como o Orivan e como a Terezinha.. Seres simples de coração farto! Esperamos vc e sua família em 2017, os pequenos já estarão maiores e quem sabe não veremos o sol nascer..

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Oriene (Suassuarana), vivo entre a cachaça e a "proesia", portanto, nunca estou sóbrio. A minha cachaça é a medicina, como descendente de Parè e Jacobeus. Pela prosa fui beirando Guimarães Rosa e Dalcidio Jurandir, até encontrar o Jandiá e ver aquela cena carnal que brotou na pena com notas musicais e as tintas do coração.

Unknown disse...

Parabéns Roger N. Jr. e familiares descendentes de João e Terezinha Sussuarana. Nossa história na própria vida Ganha verso e prosa, porque nossos filhos dos sonhos e ousamos continuar sonhando, com orgulhos que somos de muitos clãs Sussuarana e onças do sertão cearebse para Amazônia das onças, onde nascidos para viver e realizar nossos sonhos como João, assim foi, e é a geração Ezequiel Bravo Sussuarana. Com gratidão, Marcos Sussuarana., 25/02/2020.