“Este universo está cheio de histórias,
não de átomos”
Muryel Ruckeyser, poeta estadunidense
Há 30 anos um disparo calou o rio Maratauíra, braço do Tocantins. No colo da mãe, o menino Leon foi levado às pressas
para Abaetetuba, amparado nas remadas de um ribeirinho que passava por perto.
Montaram na canoa e seguiram pelo resvaloso caminho das águas amazônicas.
-De onde
vem todo este sangue? Perguntou o canoeiro, homem atarracado, com fortes traços
indígenas, remando contra o vento, a correnteza e um enigma.
-Um tiro
varou a cabeça do menino.
- Quê?
-Sim, um
disparo feito pelo pai... acidental!
Um morno
silêncio atravessou a goela daquele barqueiro.
-Não dá
pra avexar? Gritou a mãe, desesperada.
-Estou
fazendo força... Não tenho culpa.
Remou em
silencio por mais de hora. Adiante a língua roçou:
-Este
tiro foi acidental, mesmo? A mãe, cabisbaixa, ensanguentada, ficou sem voz. Apenas olhava o filho arfando, com estridor, sem esquecer de mais sete
que ficaram no Guajará de Beja, o lugarejo.
Após
quase três horas, chegaram ao hospital. Tinha a respiração opressa e logo
entubaram para aliviar o estridor. Melhorou, mas ainda corria risco. Trataram
de transferi-lo para Belém.
Vida
salva ou morte adiada?
Após três
meses, Leon teve alta e saiu de braços acorrentados com a mãe,
carregando como lembrança, por mais de trinta anos, uma canuleta metálica no
pescoço. Por ela respirava, mas sem a voz. Cresceu e atingiu a idade
adulta com aquela marca do passado. Diziam os médicos que ele tinha o goto fechado e jamais falaria.
Viveu 30
anos sonhando em mergulhar no Maratauíra, o rio de sua aldeia. Não saia de casa
com medo de o barco afundar e entrar água nos pulmões. Viveu encarcerado pela
sua história e rodeado de seus medos. Seu imaginário era regado a silêncio entremeado por silvo dos curiós,
bocejo da floresta e zoada da chuva na folha do Paricá. Leon cresceu no
trabalho pesado ao buscar fôlego para viver. Os músculos torneados eram de
tanto subir de peconha no açaizeiro e de carregar, nos ombros, sacos de estopa
com produtos da terra.
Após 30
anos voltou ao hospital para corrigir a sequela e refazer a respiração, a voz e a esperança.
Quando adentrou ao consultório, com olhar desmantelado, Leon só desconfiava,
mas estava disposto a enfrentar a cirurgia e realizar o sonho de mergulhar no rio.
Foi uma operação
longa e trabalhosa, falaram os médicos. Quando se recuperou da anestesia e
começou a sentir o ar pelas narinas, era como se a vida tivesse começado de
revés e o relógio da parede do CTI seguisse no sentido anti-horário. Tudo lhe
era estranho, inclusive o grunhido da voz e da respiração. Até hoje não sabemos
se ele se negou a falar naqueles dias de internação, ou se desaprendeu.
Leon
voltou à sua terra carregando a voz incrustada no assombro daquele estampido,
para esquecer a metade de sua traqueia que ficou no expurgo.
A
operação de mais de quatro horas foi ideia de Hermes Grillo (Boston) e Grif
Pearson (Toronto), anos setenta. Grillo dissecou a causa (longo período entubado
no CTI), mas foi Pearson o personagem, ao descobrir o pulo do gato – ou do
grilo -, ao retirar o segmento de traqueia endurecido sem lesionar o nervo
da voz, que passa rés à glote.
A partir
da década de oitenta alguns brasileiros se destacaram e disseminaram a técnica, até chegar nas quebradas do Maratauíra. Os anos que levaram para sedimentar e disseminar a
técnica foram os mesmos que Leon levou enclausurado às margens daquele barranco,
esperando a vez da sua voz.
Um comentário:
Enquanto Leon esperando a vez para ouvir a própria voz, Roger cheio de vozes literárias se preparava para se fazer escriba, escrevendo.
Vozes, letras, sussurros humanos num relato que poderia tornar-se uma narrativa mítica, algo assim:
... o hoje, ao rugir de alegria, o menino-leão do Maratauíra, contemplou do alto do barranco o rio. Saltou para suas águas e, depois de nadar com os botos, gritou para sua mãe, que o observava, embevecida:
- Consigo mergulhar!!
Médico precisa gostar de gente e de histórias. Se aprender a contá-las, um tanto melhor. Se ao contá-las nos encantar, a palavra se tornará meio de cura, bálsamo curtido em boas letras.
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