Um amigo cirurgião do Paraná, o
Vlau, em meio a uma carona, confessa-me que os filhos começam a abandonar a gente
a partir do parto, quando as cremalheiras das pinças de Kelly tilintam para reparar
o cordão umbilical. Depois vem a tesoura de Metzembaum e completa o serviço. Pronto:
pais e filhos separados.
Eu não discordo do Vlau, apesar do
magnetismo do laço familiar azougar nossos corações- Depois vai se oxidando e amadurecendo para dar vez à partida. Naquele instante, o Vlau fez minha respiração, ruidosamente,
tropeçar sobre a metáfora e me deixar, de rescaldo, uma disritmia.
Aí comecei a rever que aquele
cobertor deixando as pernas de fora, o nariz escorrendo, a ideia mal arrumada
no caderno foram lembranças desencavernadas naquela conversa. Depois de vinte e
poucos anos de convívio ao pé da casa - e a faculdade já findada-, a vida dá um
sopro e eles voam com as nossas roupas e sapatos - e ainda levam algumas de
nossas meias e cuecas.
Sem dinheiro no bolso arriscam-se
a grandes fóruns universitários e a nossa saudade passa a ser arrematada por longas
travessias, fingindo comprar açaí na esquina da Perebebuí.
E lá vamos os dois, ouro de mina,
atrás de suas pepitas a serem lapidadas, pois ao brilho ainda falta muito esmeril.
Portas em automático e fim de ano juntos no mesmo quarto de hotel. Um sopro -
ou mesmo um ronco - para abolir o tiquetaque dos relógios e tudo vira champanhe
e sete pulinhos ao mar, alhures, para brindar o novo que chega. É o plano.
[Pausa pra inspirar]
Ao descer no primeiro aeroporto e
pegar o metrô já me deparo com o primeiro laço. Logo em seguida o segundo e a
cidade abre os braços, como se fosse um cordial abraço ao Estevão da Tabacaria.
Depois seguimos batendo perna, a prosear, e ver que o tempo os tornou mais belos
e as paragens em sebos e livrarias os tornaram mais vivos. Aí uma visita ao
Chiado para ver Karl Marx, Engel, Karl Popper, Carr e Paulo Freire para sentir o gosto da
hóstia que comungamos.
[Pausa pra expirar]
Por Londres o inverno deixa a
cidade fosca. O céu é baixo, pois o sol passeia no outro hemisfério. A luz leve
não deixa sombra. Tirar a mão do bolso é banhar-se no Ártico, trincando ossos, tendões
e nervos, dificultando as passadas. Sigo ao lado dos rebentos em
caminhadas sobre soleiras de universidades, jardins, museus e livrarias, com direito a uns espirros pela friagem. Às quatro
horas a escuridão começa a invadir nossos passos e damos-por-visto depois de
achar um Dickens de 1867 e reler Sophia Andresen ou alguns livretos da Oxford Press. O final do dia é regado a
vinho e conversas acadêmicas, até o sono bater.
A vida por esses trópicos tem
ritmo erudito, pois um Nobel visita a sala de aula como eu visito as canções do
Paulo e Ruy Barata.
[Apneia]
A respiração paralisa quando já é
tempo de nos separarmos. A volta dói mais que espinha de peixe riscando a
goela. Aquele tilintar dos Kelly visita a memória e se converte na
sonoridade de uma velha canção do Milton. A despedida na estação me faz ter a
sensação de “gente que chega pra ficar e gente que vai pra nunca mais…”
Adiante, ao sentar no trem após a
última oração, a vista turva. A baixa temperatura gera uma perda de
visibilidade e os óculos embaçam, mas ainda consigo ler que estamos
chegando a Gatwick - e mais a frente o Tejo. É o caminho se encurtando e a gente
deixando, ao longo da viagem, sulcos em nosso órgão mais afetivos.
Foram-se os meninos ficaram os
homens, seus livros, suas ideias e a esperança de um mundo justo, acomodado em
suas mochilas carcomidas pelo desafio. As lembranças ficaram pelos muros de Coimbra, Sussex,
Minho, Oxford e Cambridge, regadas a discussões sobre ética a Nicômaco, o
próximo governo e, por que não (?) o futebol.