quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Aos filhos de Camilo - pelo centenário da Faculdade de Medicina e Cirurgia

Rejeitando o profundo amontoado de quimeras tão antigas quanto a ilusão humana, guardando no canto do meu peito os mestres alquimistas, eu me vi sentado àquela sala, a auscultar o murmúrio da multidão que me aproxima aos cem anos de criação da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará. Eu tinha ao meu lado a doce companhia de minhas solidões quarteladas aos meus trinta anos de existência profissional e acadêmica.
Tive a impressão - coagulada impressão -, que a matéria se dissolveu em meu epicanto e se fez o corpo das coisas em forma de suspiro, de modo a toldar a janela de vidro, após cada lágrima salgada embebida pelo fio do tempo. Agora, o ramo da parábola que o relógio registrou num sextante, foi sujeito-objeto de minhas láureas, se é que existem, se é que existiram.
Vi desde a belle Époque do Zé Maria e a aquarela histórica do Ari traduzir-se em verbo. Tu que foste verbo, tu que és estado de palavra...
Depois do triunfo conjugado no púlpito – “ser ou não ser” é apenas minha questão -, finjo vestir-me do bardo e me sair moribundo pela solidão das ruas que marcam minhas pegadas pelas soleiras de Santa Luzia - aquele casarão imenso que transformou água em vinho e me tirou dos porões onde catapultei meus cadernos.
Daquele fundo partira minha orgânica vida, ignorância-mor, em tarefas de dispensário, em meio a cadáveres, que mais pareciam seres a me apresentarem o caminho de alhures. Fui bater e ouvir o barulho da cremalheira e o tique-taque de meus pulsos quando vi a primeira artéria jorrar em meus olhos e borrar minha sabedoria sobre o que nada sei. Vi indigentes que esperavam pacientemente cada manhã para ouvir o sussurro do que somos a cada página lida à sombra de uma lamparina. Nesta aplicação total, eu excluí a piedade, mas me aparelhei do novo a partir daquela esquina, de seus muros, chafarizes e folhas de um ipê-roxo acarpetando-me com ternura para que eu pudesse pisar nas veias perdidas pelas horas de sono.
Como o olho de Deus em certas gravuras, eu me vi Hipócrates à frente de Parè e tive que enterrar vivo Galeno e seu aristotelismo. Mas foi Camilo, quem se vestiu de Ronaldo Araújo, aquele cão de guarda que rosnara seus sonhos surrealistas, feitos daqui e de acolá. Começou a sair-se pelos desfiladeiros e operou espíritos com a lâmina da sabedoria, até se achegar às vísceras e tornar menos experimental o que a sociedade condenou.
Viu-se a vida de tapuios lamber a morte, mas viu-se distintos homens visitarem a biblioteca e a lousa para dar parapeito ao abismo sem cair no cadafalso.
Não, não. Ante ao decreto da morte, aquelas paredes resistiram e puseram-se de novo a escrever o grão da ciência e da arte - ó arte! -, e foste apenas vítima dos sonhadores com o olho mais longe que a linha do equador permitia,  sem tombar do corpus. Deu-se o hoje, em brados retubantes, sob as desavenças dos desertores imperialistas, que sofisticam ideias para nada dizer.
Foram-se homens, ficou o tempo apedregulhado em forma de germe, a dar grãos para que pães alimentem a fome de bem-aventurados que se vestem de branco para esclarecer que a vida não brota em cada em escalada mensurável, mas em gestos senhorio de gnomos, mesmo que custe calcular algebricamente o centenário de um caminho longevo e destemido.
Geraldo Roger Normando - Professor do Departamento de Cirurgia – UFPA.

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