Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que pode esta língua?
O que pode esta língua?
Caetano Veloso, na
canção: “Língua”
Ao lado da Sé de Braga, na região do Minho, um gajo de solene
aparência vende toalhas de mesa com poemas escritos na protolíngua local. Explica
à brasileira que aquele sotaque os distingue na lusofonia: vizinhança com a Galícia
- mais acima, em Espanha.
Em Corunha, Galícia, um grupo de cirurgiões brasileiros
visita um hospital e posa para foto. Na porta do centro cirúrgico está sobrescrito:
Unidade de Cirurxía Torácica. Isso mesmo! Cirurgia com "x".
Na realidade, o Minho aninhou a raiz da neolatina língua portuguesa.
Foi lá que o nosso rude e doloroso idioma veio à luz. A nossa língua, de viço agreste, veio da Itália, região do Lácio, próximo
a Roma. Era falada por
soldados, camponeses e camadas populares, que migraram para a Galícia, esse recanto esquecido da península
ibérica. Lá fincaram bandeira sem delimitar território. Depois, como numa irmandade, desceram para Portugal sem marcar fronteira.
Ora, pois, como a poesia está para a prosa, então parti de
Braga rumo à Galícia, só para sentir na tuba auditiva a raiz de nossa lira
singela.
Não deu pé: chuva medonha. Paramos em Viana do Castelo,
fronteira. A bela cidade, para nos salvar, guarda boas livrarias. Entrei,
bati os sapatos, sentei e pus-me a ler sobre nosso ouro rico de ganga impura. Comecei
a depurar por Afonso Henriques, o primeiro rei. Nascido em Guimarães, berço de
Portugal, ele oficializou a língua como galego-portuguesa, após expulsar os árabes e uns
poucos normandos que sobraram da invasão viking. Com isso, o rei retira a língua de Camões
do exílio e põe na rota das grandes nações. Historiadores aferem que Portugal, verdadeiramente, nasce neste
exato momento.
Li também que o primeiro poeta foi o
rei dom Dinis. Desconfio até que aquelas trovas impressas nos souvenirs próximo à Sé de Braga começaram com esse poeta galego.
Então, a partir do rei, da poesia e da criatividade, a língua
ganha rua, contornos, e passa a se chamar a língua do reino. A partir daí ela
desce para Lisboa, reconhece os versos de Luiz Vaz e vai parar no Algarves para
ganhar adaptações e sotaques. Do continente lança-se ao mar e atinge ilhas
vizinhas, África e o Oriente; cria confusões de prosódias ao atravessar o
Atlântico para invocar Gregório de Matos Guerra, o “Boca do Inferno”, no lado brasileiro; aguça Olavo Bilac, no poema que exalta a última flor do Lácio. Depois veio
a música “Língua”, de Caetano, tudo junto e misturado no mesmo sangue, com a boa
dose de lirismo: “como se num suave azulejo o rio Amazonas, que corre Trás-os-Montes, numa
pororoca, desaguasse no Tejo”, diria Chico Buarque.
No último século, com a expansão do castelhano e as regras
para o português do norte, começou a ocorrer divergência no que se falava nas
ruas e, definitivamente, ela se separa do galego. Mas ficaram rastros em sua pronúncia,
como a palavra “cirurxía”, por exemplo.
Ao visitar o dileto Gonzales-Rivas, oriundo da Galícia, que mora na China e por lá anda divulgando a cirurgia torácica ultramoderna, ele apresentou-me a jovem Isabel, cirurgiã galega que hoje mora em Madrid, e foi aluna sua. Na roda de conversa eu falava português, sem qualquer tentativa de me desdobrar no portunhol e os dois me entendiam muito bem. Então, alhures, ouvi os gorjeios do galego deixados ao fundo do ninho do Minho, quando despertou minha curiosidade...
Ao visitar o dileto Gonzales-Rivas, oriundo da Galícia, que mora na China e por lá anda divulgando a cirurgia torácica ultramoderna, ele apresentou-me a jovem Isabel, cirurgiã galega que hoje mora em Madrid, e foi aluna sua. Na roda de conversa eu falava português, sem qualquer tentativa de me desdobrar no portunhol e os dois me entendiam muito bem. Então, alhures, ouvi os gorjeios do galego deixados ao fundo do ninho do Minho, quando despertou minha curiosidade...
Na livraria, já era fim do dia. Continuei sentado, a escutar
o silêncio da chuva cerzindo o tempo, até me deparar com “O Livro do
Desassossego”. Ali vi a inculta e bela vestir-se do manto régio da transliteração
greco-romana, sob os versos de “Minha pátria é minha língua”. Lá o esplendor da
syntaxe de Fernando Pessoa fez-me
entender que a última Flor do Lácio deixara ao léu uma pétala de rosa entre vielas e castelos de Guimarães, até que os descendentes de Guimarães Rosa
pudessem juntá-la, guardá-la na alma e enternecer o imenso Portugal.
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