“Vento que passas, leva-me contigo. Sou poeira também...”
Miguel Torga, poeta português.
"Viver é etecétera...", grifou Guimarães Rosa e, como o ponto final ainda não aportou em minha jangada de textos, sigo entre vírgulas e reticências a esperar a página em branco (ou cinza...) ganhar estampa. Desde então ando cavoucando coragem em cada ideia alvissareira em que me jogo, e me lanço ao desafio, tal como o pescador em sua jangada imbui-se da jornada ao mar.
Uma dessas ideias se interpôs em missão a Viena para
realizar um curso prático na área cirúrgica. Semana antes de embarcar, recebi convite para fazer
uma paragem em Lisboa para dar uma aula no hospital São José (Centro Hospitalar Universitário de Lisboa),
referência maior em urgência naquela cidade. O tema cabia perfeitamente na minha vivência,
por isso, fiquei honrado pelo convite. Aceitei na bucha.
Já em terras lusíadas, a Avenida Liberdade se expandia em cada passo.
Dobrei o Rossio e me direcionei ao hospital com o pulso fechado. A arquitetura do lugar, até chegar
ao salão nobre, é um relicário da nobreza portuguesa. Neste roteiro, caminhei
pela memória de um país e de um povo, sob afrescos e iluminuras e entre paredes entulhadas de memória. Vi nas escrituras um corolário de
elementos historiográficos que levaram à insignificância de minha presença:
desde a reconstrução do hospital após o terremoto de 1755, passando pelos desígnios da
dinastia pombalina até os mandamentos de Salazar e o Estado Novo. Aquela academia
de cirurgia, então criada pelo enfermeiro-mor Luiz de Vasconcelos, mereceu resistir a essas intempéries. Ali se ouve as tessituras do tempo em notas afixadas às
paredes do templo - sagrado ao ensino e ao assistencialismo. Ao
escrever esta página, veio-me à memória um excerto de Lobo Antunes: “Regressando
aos santos, sandálias sempre”.
Consoante ao novo desafio, antes de iniciar a leitura, conheci os professores Oliveira Martins e Novo de
Matos, coordenadores do serviço. Mas um detalhe na sala de espera e de reuniões
me chamou atenção. Estava afixada à parede o anúncio da aula - que muito me
honrou -, e um quadro branco à meia altura da parede, com desenhos feitos à mão.
Não eram desenhos quaisquer, mas expressões da cirurgia com traços vivos de arte -
arte como pão e vinho diário para quem dela precisa.
Ao indagar a autoria, Martins levantou o dedo; abandonou
a sala... e voltou. Voltou com um livro na mão - um regalo. Ali continha alguns de seus
desenhos que costuma fazer após cada emboscada cirúrgica de urgência, agora transfigurado em
livro. "Cadernos de um cirurgião" é uma leitura de desenhos que se
debruça no cotidiano da arte cirúrgica, ora pela dedicação profissional, ora
pela causa acadêmica, conforme descreve o escritor Guilherme Martins:
"É um exercício em que várias artes se cruzam. A arte do médico tem o seu
próprio movimento, a sua concentração, o planeamento, a encenação, a liturgia,
o gesto, a aplicação certeira dos instrumentos de precisão, o bisturi com a sua
magia, tudo para que o resultado seja próximo da perfeição, que permita
recuperar a saúde e o bem-estar da pessoa que o cirurgião opera. Já de si a
palavra 'operar' é ambivalente - falamos de obra, de criação e de recriação.
Estamos na ligação entre a arte e a ciência. E, como dizia Rômulo de Carvalho,
que conhecemos a vida inteira como um outro Kant, por cujas rotinas podíamos
acertar os nossos relógios: 'não somos, em última análise, o método, o
processo, a forma e o modo. E se falo de encontro de várias artes, chego com a
ilustração destes 'Cadernos' - o desenho, como movimento, como gesto e como
representação."
No caminho de volta, a Avenida Liberdade me retoma o
pulso e, na clara ideia daquela artéria da cidade, tentei fazer valer todos os
caminhos por onde se busca viver eteceteramente.
2 comentários:
O que dizer? A arte e a ciência da cirurgia se entrelaçam nas mãos e na vida de muitos médicos. Questão de atitude, de princípio? O que nos faz artista no que fazemos? O amor à vida, ao bem, ao belo?
Talento, esforço, visão de mundo, disciplina firme, alma leve quando uma necessidade surge e somos convocados a agir...
Fico muito contente em saber das andanças deste menino acriano, de Tarauacá, que faz bonito pelo mundo, honrando a Amazônia,a família, os amigos,os pares. Salve, Roger!!
A arte salva...
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