sábado, 28 de março de 2020

Uma jornada ao vidro-fosco


Fred Hoyle era um astrônomo brincalhão e adorava burilar ideias. Reza a lenda que na Inglaterra pós-guerra, em entrevista à BBC, alcunhou o termo Big Bang à teoria de criação do universo. Sobraram gracejos. Ele quis falar, de forma frajola, sobre a explosão que gerou as galáxias há 13,8 bilhões de ano e do tiroteio de átomos, a partir do Buraco Negro. Ainda não se sabe quem apertou o gatilho, se Deus ou mudança de temperatura do universo, mas o bang-bang do Big Bang pegou prumo e, apesar dos sussurros durante a entrevista, a palavra vestiu-se de delírio e vem desfilar neste texto.
A partir desta expansão do universo nascem ampulheta, espaço e as horas dos relógios. Einstein, Hawkins, Carl Sagan, Edwin Hubble e uns tantos mais andaram debruçando seus cotovelos sobre a teoria. Tal conteúdo ficou mais denso com as recentes publicações do Bóson de Higgs em laboratório - conhecida como “Partícula de Deus”.
Desde então, os astrônomos quando olham para o céu noturno e veem aqueles vaga-lumes piscando, certamente vem à tona a entrevista do bem-humorado Hoyle.
Decerto também a oncologia pulmonar teve seu Big Bang, assim como seu Fred Hoyle. Com os tomógrafos helicoidais de alta resolução - nossos telescópios-, partículas em forma de poeira, menores que meio centímetro, passaram a ser visualizadas no cosmo pulmonar. A esse achado chamou-se de vidro-fosco. O vidro-fosco é o nosso Big-Bang, pois o pulmão, repleto de ar, deixa passar, frivolamente, os raios colimados, mantendo o desenho dos brônquios e vasos. Porém, quando há qualquer perda da transparência, a imagem torna-se fosca – uma espécie de poeira.  
Deixa ver que, no inicio do século passado, John George Adami, professor de Patologia na McGill University-Canadá, cria o termo “lepídico” no seu microscópio, que viria a ser o vidro-fosco como tradução imagética. Lepídico vem do grego: “escama de peixe”. Ele quis dizer em seu livro Princípios de Patologia, que padrão refere-se à lesão circunscrita que descama e escorre para o interior do alvéolo e por lá, acumula-se a ponto de formar um amontoado, justapostos como “escamas de peixe”. Assim sublinhou: são células tumorais de adenocarcinoma, proliferando ao longo da superfície de paredes alveolares intactas, sem invasão estromal ou vascular.
Desde então, quando se mira a tomografia e se vê aquele desenho opaco ofuscando o parênquima pulmonar, desconfia-se do Adenocarcinoma, tal como os astrônomos vislumbram as galáxias em seus telescópios.  
Com melhor entendimento do padrão em vidro-fosco, agora em evidência pela nova peste, houve necessidade de se refazer a classificação anatomopatológica do câncer de pulmão e, desde então, Adami não foi o mesmo: a pneumologia mudou sua rotina e a oncologia torácica viveu a catarse.         
Com esse diapasão, IASLC-ATS-ERS, maestrinas interessadas no assunto, puseram o vidro-fosco e o padrão lepídico numa mesma sinfonia e propuseram a nova classificação da categoria T. Trouxeram à baila desenhos geométricos para se recalcular o estadiamento. A inclusão destes elementos morfológicos, restritas ao Adenocarcinoma, deu novo rumo ao tratamento cirúrgico, assim como ao prognóstico.  
O incessante rastreamento (do inglês screening) em busca dos vidros-foscos tornou-se a maior fissura da atualidade, em que se vislumbram melhores resultados para a cura do câncer pulmonar.  
Porém uma próxima conquista tem pressa e busca por tumores avançados. É bem provável que venha pelos filamentos helicoidais da linguagem genética do EGFR, KRAS ou ALK, ou num futuro ainda não encomendado... Mas deixemos a poeira desta peste passar.

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