domingo, 21 de junho de 2020

Paranatinga infinito

Devo confessar a estas páginas que me sinto uma gota de espuma ao léu por tentar escrever sobre Ruy Paranatinga Barata em seu centenário de nascimento. Mas me arrisco a riscar idéias e transpor o limbo que soterra minha inanição literária.
Do pouco que eu sei - e não me atrevo a esticar nada -, além de suas andanças que vi pelas noites belenenses, também ia de proa pela poesia e pela música amazônica. É nítido que Ruy subtraía dos tesos e das beiradas de rio a matéria prima de sua assinação. Reatar seus versos para reaver esse centenário, faz-me lembrar a sina dos vagalumes: de viverem a ziguezaguear pelas matas nos confins da escuridão, com fins de mostrar sua assinatura.
Mas como o vagalume produz a sua assinatura? A resposta é que esses insetos apanham o oxigênio da natureza e recombinam com uma substância chamada luciferina para produzir a luz sem gerar queima de energia. Entretanto os cientistas ainda não sabem como eles ligam e desligam suas luzes (É segredo de poetas. Talvez Paranatinga, um tapuio com sangue de índio, tenha a resposta embrenhada em seus uni-versos).
E como o Paranatinga sentenciou sua assinatura? A resposta é que esse ser iluminado apanhava o oxigênio das palavras e recombinava com uma substância chamada eritro-poetina, que corre nas veias, dentro das hemácias dos poetas, até alcançar sinapses plangentes e esguicharem-se em seu cenário de verde-mundo. Os cientistas só não sabem como os poetas vagalumiam-se diante desta quimioluminescência. Conhecer esse ciclo por inteiro e transformá-lo em poesia é tarefa das mais difíceis e nenhum cientista ousa pôr seu método em risco para entender este enigma. 
Sendo o poeta pessoa plural, que vagueia por todas as áreas do conhecimento até alcançar os versos, poder-se-ia dizer, então, que o poema é a completude do homem, mas que, para se tornar lembrança infinita ele precisa do aval da natureza, obtida  entre o diálogo da escrita obsessiva e seu húmus, d'onde extrai-se a raiz de termos criptografados na língua nativa. Assim é o Paranatinga, uma forma de espanto entre tantos entretantos e haveres da verborragia: Araguary, Anapu, Anauerá, Canaticu, Maruim, Bararoá, Tajupará, Tauari, Tupinambá...                 
O que inspiraria este artista? Seria, então, o resto de sol no mar - a última luz do dia? Vejamos. Se existe alguma arte em tudo que circunda a floresta amazônica, cortada por rios e atalhos d’água, então, se juntarmos os últimos raios solares que apagam o plano de cada dia, estaremos diante da natureza pedindo o poema; estaremos diante dos pirilampos pedindo a noite; estaremos no meio do rio, no canto da rua, rogando por Ruy. Então, basta qualquer espaço nu: pedra, chão, papel, asfalto – ou mesmo um tosco tronco submerso-, para transformar o olhar semiótico da floresta em tinta que escorra pela caneta do poeta, até tingir o seu mundo com as cores da folha do paricá.
(Ou seja...)
Assim como o vagalume precisa daquela fotoproteína para sua assinatura, Parantinga precisava da fotolucidez, o estalo da criação de seus versos únicos. Assim, de forma crua e rendilhada, ele expunha seu murmúrio contextualizado de imagens e sons que podem ser auscultados rés às suas origens, ou sob a forma de acordes, que precisam de vozes alçadas na fonte propulsora do filho Paulo André, violeiro de encantos e gingados bamboleantes, que deu a Paranatinga asas para ir além da floresta.
Ruy -meu caro Paranatinga-, mesmo alhures, deixe duas ou três pedras de gelo a tilintar pelo teu copo vazio; depois peça ao Zé Bastos três dedos do melhor uísque do Bar do Parque para que o pavio da lamparina reacenda as velas de teu centésimo aniversário de vida. No último gole, suspenda a taça no rumo do teatro do céu e peça para que os pirilampos acendam as luzes de teus versos para que brindemos a poesia que nos revigora em tempos de recolhimento.


Roger Normando, professor de cirurgia torácica da UFPA. 
Editor-chefe do Jornal da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica.

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