domingo, 25 de setembro de 2022

A centésima voz

Nem tudo que se faz na medicina tem evidência máxima. Vai se construindo o aprendizado ao longo de descobertas, sem esquecer dos percalços. Em cirurgia das vias aéreas (Laringe e traqueia), compreende-se melhor o que se faz depois de já feito, como se fosse descoberta, como se fosse pintar as imagens com palavras de se ver e ouvir. Assim bem desenhou nosso centésimo paciente da série de cirurgias traqueais realizada no Hospital Público Estadual Galileu (HPEG): “Deu uma sangradinha de leve, mas a recuperação está sendo boa”, disse ele ao ser indagado sobre a evolução do primeiro dia.     

O ar frajola de seu testemunho deixa o jovem cirurgião, ao lado, com o rosto estupefato. Em seguida vem o riso frouxo. Se paciente brincou com a própria dor pós-operatória do primeiro dia, outrossim, comemorou a boa recuperação da voz, da respiração e da capacidade de sentir cheiro e ar passando pelas narinas. Brindou a vida após a longa espera na fila da eucaristia com as mãos atadas à esperança.


Somos três cirurgiões titulados pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica (SBCT). Tocamos esse trabalho todo sábado, como parte de um programa do governo do Pará, denominado TRAQUEOPLASTIA, cujo escopo é recompor a via aérea de usuários de traqueostomia. O programa comemora seis anos em outubro e já atendeu mais de 250 pacientes, entretanto a grande maioria dos procedimentos é endoscópica. Nem todos precisam de cirurgia aberta, todavia neste final de semana (24/09/2022) ocorreu o centésimo caso.

Cerca de vinte cirurgiões (locais, nacionais e estrangeiros) já estiveram presentes neste programa, tendo em vista o grande desafio que se tem com as operações neste compartimento específico do corpo humano. 

Durante esses seis anos há pedaços da memória que se colam ao cérebro, feito adesivos deixados na borda de cada página interrompida para o descanso da leitura - até que se chegue ao final da centésima página. Seríamos capazes de viver um livro de 100 páginas? Talvez. Se há aproximação com a com a literatura médica e a arte da cirurgia, nem precisaria tanto. Mas se há distâncias, haverá de conter mais de mil páginas, mesmo assim não se aguçaria o sentido da ordem. Cerca de vinte cirurgiões (locais, nacionais e estrangeiros) já estiveram presentes neste programa, tendo em vista o grande desafio que se tem com as operações neste compartimento específico do corpo humano.

Se o exercício da cirurgia acende suas páginas ao incisar cada pele, ou a cada despertar do sono anestésico, não se pode deixar de lembrar das diversas horas repelindo o insucesso. E que não deixemos de reconhecê-los como parte da caminhada, hoje às avessas desta escrita comemorativa.

Assim revivemos a centésima operação aberta nas vias aéreas no Hospital Público Estadual Galileu (HPEG), para que a fala desse jovem revele nosso prumo: “... mas a recuperação está sendo boa”.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Causos de congressos

         Estamos em mais um congresso. É nos reaproximar de novos avanços, assim como novas ideias que buscam equilibrar-se sobre as linhas que costuram o tempo, em que tecemos o exercício clínico. Agora é hora de deixar as teias fiadas à luz do projetor e as têmporas abertas, por onde escorre a serotonina do aprendizado.
        Mas que não abandonemos os causos que nos levam ao riso frouxo. Esses é que marcam nossas reminiscências.
        Quantos de nós colecionamos causos de congressos? Claro, dirijo-me aos boêmios de carteirinha com vacina da Covid em dia. Quer dizer, melhor não dirigir: vai que tenha blitz no caminho? 
        Ainda que já tenha deixado o exercício da boemia pela compulsória, agora me resta contar história motivada por mais este encontro.
       Há congressos que até quando protagonizamos duvidamos ter acontecido. Ocasiões em que a gente não faz a menor ideia de como foi que tudo acabou e tenhamos conseguido sobreviver.
        O causo de hoje começa por um domingo de muitos e muitos anos atrás - talvez 2002-, quando certo personagem, que só líamos nos alfarrábios da medicina, esteve presente em nosso congresso. Nome do busto: Frederick Griffith Pearson. Hoje o busto está cravado na porta do centro cirúrgico do Toronto General Hospital. 
          Esse canadiano (assim falam os portugueses) completaria 72 anos naquele exato domingo, quando o evento científico já havia trancado as portas e passado o ferrolho. Como bom botequeiro, tínhamos ainda o domingo para passear, e não se podia deixar passar em branco. Elegemos um barco-boteco seguro para ver o encontro das águas dos majestosos Amazonas e Negro. Lembro de estar com os amigos Artur, Luis Carlos, Fernando e Manoel Ximenes (esqueci mais alguém?).              Final da tarde, dever cumprido com as caipirinhas, era hora de voltar. Só que, de última hora pintou um parabém, anunciado de supetão. Aliás, não sei como arranjamos uma vela, fósforo e um abacaxi para comemorar o aniversário de um dos maiores cirurgiões do mundo. Isso mesmo, bem ali no meio da maior floresta do planeta. 
         Então fizemos uma segmentectomia no cume do abacaxi com apenas um talho do bisturão (mistura de bisturi com facão). Com a coroa espinhenta fora, expusemos a porção carnosa da fruta e fizemos um pequeno furo no meio, para fincar a vela sete-dias-sete-noites, achada, por acaso, na caixa de máquina do barco. Até aí foi fácil. O difícil foi acender o pavio por conta da intensa ventania. Paramos o barco no meio do rio-mar, exatamente no encontro das águas, e pedimos ao deus Jurupari para que desse uma trégua e então pudéssemos comemorar o répi bôrtudei tchu-iú (é assim que se pronuncia na língua da rainha?). Enquanto isso, o aniversariante, que já havia aposentado o bisturi, ficava observando toda aquela muvuca com o olhar perdido, pois não compreendia nada de nossa língua tupi-guarani-nhangatu-camoniana.
         Até que em certo momento nós, já mais encaipiroscado que urubu  dançando carimbó na feira do Ver-O-Peso, Jurupari deu vez. Foi quando o pavio brilhou com suas chamas; o homem percebeu que era festa surpresa. Ficou emocionado ao perceber que era o protagonista daquela insanidade dos botequeiros. O piloto do barco devia estar achando que aquilo ali fizesse parte do roteiro. Nada disso. Tudo improviso. Foi Ximenes, velho amigo de outrora, quem dedurou o aniversário desse que foi um dos cirurgiões mais marcante da história da medicina moderna.
        Agora, só não me perguntem como tudo acabou. Já abordei Artur e Fernando, a quem sou mais chegado, mas eles também não lembram. Fiquei com vergonha de perguntar ao Ximenes, que batia na idade do Pearson, e à minha Valéria, para não perder o casamento que cativo desde quando era pé-rapado, no Rio de Janeiro. O fato ficou registrado em fotografia, pelas mãos dela.
        Lembrei desse causo outro dia, quando abri as páginas de um livro de história da cirurgia Torácica no Canadá e vi a tal foto de Pearson, comemorando seus 72 anos no meio da selva, naquele domingo, naquele barco singrando aquele sertão de águas. Na foto ele está ao lado de Manoel Ximenes, seu grande amigo e quem havia autorizado sua entrada no Brasil.
        Depois de estampar a foto do histórico livros, criei coragem de perguntar À esposa como tudo acabou. Pensei que tivesse sido história de assombração, mas sem dúvida, aquele foi um dos melhores botecos que já passei, ainda que por pouco tempo. Por algum tempo achei que tivesse sido um delirium-tremens cachaçônico. 
        Na dúvida é só abrir a página 172 da história da cirurgia no Canadá. E se alguém achar que tudo isso foi lenda, que valha a lenda.

sábado, 10 de setembro de 2022

Cirurgia robótica uniportal – “Es La nueva revolución mundial”

Foto original de Gonzalez-Rivas

“A new earthquake in thorassic surgery”

Joel Dunning, cirurgião inglês (2022)

    Em 2010 o espanhol Diego Gonzalez-Rivas surfou na geometria euclidiana com abordagem por incisão única, em vez de duas ou três, para videocirurgias. Criou-se uma revolução dentro da evolução da cirurgia minimamente invasiva. Desde então o galego anda navegando pelos sete mares, a disseminar seu pioneirismo.
    O italiano Gaetano Rocco, pioneiro na ideia usando ressecções menores, descreve que a vantagem da uniportal em comparação à convencional está na projeção da lesão-alvo, que preserva a profundidade de visualização fornecida pelos monitores bidimensionais. Na bi ou triportal o plano de torção criado ao longo do losango dificulta a enxergar o fundo. Leonardo da Vinci aplicou a geometria euclidiana em suas pinturas, chamando de “ponto de fuga”, que seria a tradução de lesão-alvo.
    Com a chegada da plataforma robótica, finda o plano bidimensional e a visão
3D emplaca. O problema do robô é o custo alto e isso acabou amargurando a fila de espera até a poeira financeira baixar – se baixar -, o que acabou espanando para o final da fila alguns entusiasmados.
    No Brasil, Ricardo Sales (São Paulo, 2011) realizou as primeiras cirurgias
robóticas. Em seguida vários começaram a seguir suas pegadas, certamente inebriados pela ergonomia e visão 3D. Passado mais de dez anos da publicação de Sales, é notória a adesão de diversos brasileiros, nos últimos anos, à nova plataforma.
    Mas quando se pensou que a uniportal (Uni-VATS) estaria sendo engolida pela
robótica, Rivas e seu séquito voltam à cena, agora com a uniportal robótica (Uni-RATS). Ao descartar a ideia euclidiana que o prendia à configuração geométrica do paralelograma, qual seria o feitiço de Rivas a continuar com a idéia da Uniportal, já que a visão 3D é a maior contribuição da robótica?
    A resposta está na recente visita feita à América Latina, começando pelo Brasil.
Em Brasília ele realizou a primeira ao lado de Humberto Oliveira: cisto
mediastinal e lobectomia em braçadeira. O resultado foi animador. Oliveira ficou
entusiasmado com a ideia. Ele afirma que na Uni-VATS a câmera do auxiliar fica
esgrimando com os instrumentos do operador e isso acaba dificultando a liberdade dos movimentos no campo operatório. Paula Ugalde corrige isso ao se apossar da câmera com uma das mãos. Com a outra ela disseca e o auxiliar traciona e fasta os tecidos. No robô esse problema acaba, pois a câmera é controlada pelo cirurgião, com isso aumentam as chances de mais adeptos à incisão única.
    Após alguns dias de convivência com Rivas, Humberto Oliveira noticia a
realização da primeira Uni-RATS brasileira: lobectomia inferior. Rivas ululava: “foi a primeira na América Latina”.
    Com essa transmutação da Uniportal, o inglês Joel Dunning ressalta: “Pode ser
a próxima revolução as duas melhores abordagens combinadas!”. Numa bela manhã de domingo Paula Ugalde (Boston, USA) posta: “coisas interessantes aconteceram hoje por aqui: primeira uniportal robótica em humanos [sai do console experimental para a prática clínica, nos EUA]”. 
    Ao ler as mensagens de Ugalde e Dunning, o teatrólogo inglês Bernard Shaw, se vivo fosse, diria: “O homem sensato se adapta ao mundo; o insensato insiste em tentar adaptar o mundo a si. Portanto, todo progresso depende do insensato”.
É lógico que com o passar das horas, dos dias [...], dos anos, os sentidos ficarão mais apurados e será mais fácil não só essa adaptação, mas também ouvir estrelas, tropeçar nos astros, ou ainda passear no vento das ideias para sentir no peito a sinfonia das pulsações arteriais e o arfar dos pulmões, para sabermos se o método diferencia. A partir daí teremos espaço para avaliar se é revolução ou contemplação. Tudo para que os gostos pelos conquistas sejam tão aplicáveis quanto interpretar a geometria euclidiana e a passagem por uma
rota interminável chamada desafio.

Texto originalmente publicado no J-SBCT