Estamos em mais um congresso. É nos reaproximar de novos avanços, assim como novas ideias que buscam equilibrar-se sobre as linhas que costuram o tempo, em que tecemos o exercício clínico. Agora é hora de deixar as teias fiadas à luz do projetor e as têmporas abertas, por onde escorre a serotonina do aprendizado.
Mas que não abandonemos os causos que nos levam ao riso frouxo. Esses é que marcam nossas reminiscências.
Quantos de nós colecionamos causos de congressos? Claro, dirijo-me aos boêmios de carteirinha com vacina da Covid em dia. Quer dizer, melhor não dirigir: vai que tenha blitz no caminho?
Ainda que já tenha deixado o exercício da boemia pela compulsória, agora me resta contar história motivada por mais este encontro.
Há congressos que até quando protagonizamos duvidamos ter acontecido. Ocasiões em que a gente não faz a menor ideia de como foi que tudo acabou e tenhamos conseguido sobreviver.
O causo de hoje começa por um domingo de muitos e muitos anos atrás - talvez 2002-, quando certo personagem, que só líamos nos alfarrábios da medicina, esteve presente em nosso congresso. Nome do busto: Frederick Griffith Pearson. Hoje o busto está cravado na porta do centro cirúrgico do Toronto General Hospital.
Esse canadiano (assim falam os portugueses) completaria 72 anos naquele exato domingo, quando o evento científico já havia trancado as portas e passado o ferrolho. Como bom botequeiro, tínhamos ainda o domingo para passear, e não se podia deixar passar em branco. Elegemos um barco-boteco seguro para ver o encontro das águas dos majestosos Amazonas e Negro. Lembro de estar com os amigos Artur, Luis Carlos, Fernando e Manoel Ximenes (esqueci mais alguém?). Final da tarde, dever cumprido com as caipirinhas, era hora de voltar. Só que, de última hora pintou um parabém, anunciado de supetão. Aliás, não sei como arranjamos uma vela, fósforo e um abacaxi para comemorar o aniversário de um dos maiores cirurgiões do mundo. Isso mesmo, bem ali no meio da maior floresta do planeta.
Então fizemos uma segmentectomia no cume do abacaxi com apenas um talho do bisturão (mistura de bisturi com facão). Com a coroa espinhenta fora, expusemos a porção carnosa da fruta e fizemos um pequeno furo no meio, para fincar a vela sete-dias-sete-noites, achada, por acaso, na caixa de máquina do barco. Até aí foi fácil. O difícil foi acender o pavio por conta da intensa ventania. Paramos o barco no meio do rio-mar, exatamente no encontro das águas, e pedimos ao deus Jurupari para que desse uma trégua e então pudéssemos comemorar o répi bôrtudei tchu-iú (é assim que se pronuncia na língua da rainha?). Enquanto isso, o aniversariante, que já havia aposentado o bisturi, ficava observando toda aquela muvuca com o olhar perdido, pois não compreendia nada de nossa língua tupi-guarani-nhangatu-camoniana.
Até que em certo momento nós, já mais encaipiroscado que urubu dançando carimbó na feira do Ver-O-Peso, Jurupari deu vez. Foi quando o pavio brilhou com suas chamas; o homem percebeu que era festa surpresa. Ficou emocionado ao perceber que era o protagonista daquela insanidade dos botequeiros. O piloto do barco devia estar achando que aquilo ali fizesse parte do roteiro. Nada disso. Tudo improviso. Foi Ximenes, velho amigo de outrora, quem dedurou o aniversário desse que foi um dos cirurgiões mais marcante da história da medicina moderna.
Agora, só não me perguntem como tudo acabou. Já abordei Artur e Fernando, a quem sou mais chegado, mas eles também não lembram. Fiquei com vergonha de perguntar ao Ximenes, que batia na idade do Pearson, e à minha Valéria, para não perder o casamento que cativo desde quando era pé-rapado, no Rio de Janeiro. O fato ficou registrado em fotografia, pelas mãos dela.
Lembrei desse causo outro dia, quando abri as páginas de um livro de história da cirurgia Torácica no Canadá e vi a tal foto de Pearson, comemorando seus 72 anos no meio da selva, naquele domingo, naquele barco singrando aquele sertão de águas. Na foto ele está ao lado de Manoel Ximenes, seu grande amigo e quem havia autorizado sua entrada no Brasil.
Depois de estampar a foto do histórico livros, criei coragem de perguntar À esposa como tudo acabou. Pensei que tivesse sido história de assombração, mas sem dúvida, aquele foi um dos melhores botecos que já passei, ainda que por pouco tempo. Por algum tempo achei que tivesse sido um delirium-tremens cachaçônico.
Na dúvida é só abrir a página 172 da história da cirurgia no Canadá. E se alguém achar que tudo isso foi lenda, que valha a lenda.
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